"Toda epoca e ruim, quando vivemos algum tempo nela."
Tenho pensado muito sobre Paulo Francis e sobre essa frase, baseada em ideia do historiador e filósofo norte-americano George Boas. Ela abre uma de suas derradeiras colunas para esta Folha, "Monólogo Interior", texto de outubro de 1990, republicado na antologia "Diário da Corte" (Três Estrelas, 2012).
Francis é personagem fundamental para minha formação. Enquanto vivo, acompanhei principalmente sua fase pós-Folha, anos 90, em "O Globo". E via suas participações anárquicas e delirantes na TV. Ao contrário dos jovens que com quem convivia na época, eu o adorava. Ainda hoje, vejo seus vídeos no YouTube, leio seus textos. Tenho saudades de um homem que nunca conheci, mesmo sempre discutindo com ele.
Eu o via como um herói da cultura. Em tempos pré-internet, cronista-mapa do século 20 a enviar sinais de uma Nova York mitológica. Não me apresentou apenas escritores e cineastas. Junto a minha avó, que soltava fitas cassete de "Madame Butterfly" ou "Tosca" no último volume e narrava seus enredos quando eu tinha cinco anos, uma criança ainda sem traumas aparentes, foi Francis quem me ensinou a gostar de ópera. E jazz. Meu rascunho de melómano pré-adolescente a ouvir concertos e frequentar a Sala Cecília Meireles no centro do Rio –imaginando o Lincoln Center em delírios de cosmopolitismo na periferia do mundo– foi traçado por ele.
É também muito por causa de Francis que sou um homem de "esquerdas", como ele mesmo dizia –hoje, estou à esquerda da esquerda, aliás. Bons articulistas nos ensinam por contraste e oposição. Tinha prazer em discordar dele, na maior parte das vezes com humor, até quando era agressivo, preconceituoso ou simplesmente detestável. Ainda era possível. Mudaram os tempos, mudamos nós e, principalmente, os articulistas reacionários. Francis hoje engoliria algumas aberrações hidrófobas que se creem filhotes dele –ou talvez as visse apenas como "jecas" primitivos patrocinados pelo belzebu.
Na mesma coluna de 1990 que uso para abrir o texto, ele cita Yeats: "Os melhores nao tem convicc'ao alguma, enquanto os piores estao cheios de intensidade passional". E continua: "É facil reconhecer nosso mundo nessas linhas de Yeats".
Morreu de um ataque cardíaco, aos 66 anos, em 1997, sob a ameaça de um processo de US$ 100 milhões que Joel Rennó, presidente da Petrobras em anos FHC, movia contra ele na Justiça americana. A metralhadora de Francis soltou, no programa de TV "Manhattan Connection", que a diretoria da empresa era corrupta e tinha dinheiro guardado na Suíça.
Elio Gaspari escreveu nesta Folha no dia seguinte a sua morte : "A gestão estimulada por FFHH caducou na manhã de ontem. Paulo Francis está morto. O que o doutor Rennó precisa saber (e sabe-se lá o que ele sabe) é que conseguiu ferir o seu adversário. Seu processo ocupou um espaço surpreendente na alma de Francis."
Quase 20 anos depois da sua morte, o tema da corrupção durante a presidência de Joel Rennó (1992-1999) na Petrobras (ou "Petrojoel", como o mesmo Gaspari batizou em 2001 está na delação do senador Delcídio do Amaral, divulgada integralmente semana passada.
Talvez tenha sido a parte da delação menos repercutida pela imprensa. A história é manjada, mas reproduzo: "Delcídio do Amaral tem conhecimento de ilícitos perpetrados entre a Marítima, de German Erfromovitch, e a Petrobras, quando era presidida por Joel Rennó, envolvendo o fornecimento de sondas e plataformas de petróleo. [...] Delcídio do Amaral tem conhecimento que esses sucessivos atrasos e sobre-preços custaram milhões de reais para a Petrobras e consequentemente para o País. [...] Joel Rennó, à época, gozava de apoio político que nenhum presidente da companhia teve ao longo da sua história, o que se atesta pela sua longevidade a frente da Petrobras."
Ao ler a delação, vejo que o sobrepreço apontado por Delcídio na negociata de apenas uma plataforma é de US$ 100 milhões, o mesmo valor da indenização por calúnia que infernizou o escritor.
Em 1997, ano em que Paulo Francis morreu, Paulo Roberto Costa, funcionário de carreira da Petrobras que depois tornaria-se o primeiro delator de peso da Lava Lato, ganhou a diretoria da Gaspetro. Em 2004, já nos anos Lula, chegou a diretor de abastecimento. Há outros nomes envolvidos no esquema desde 1997, como Pedro Barusco, que transitou entre os dois governos. Os escândalos na estatal atravessaram os mandatos de ambos os ex-presidentes, com a evidente anuência dos dois.
Só falta Lula confessar. FHC já o fez. Um ano antes da morte de Francis, em 1996, segundo seu livro "Diários da Presidência - volume 1" (Companhia das Letras, 2015), ele já tinha conhecimento de um enorme esquema de corrupção na estatal mantido por diretores sob o controle de Rennó: "Quem manobra tudo e manda mesmo é o Orlando Galvão Filho, embora Joel Rennó tenha autoridade sobre Orlando Galvão", teria dito a ele o dono da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Benjamin Steinbruch.
Na época anotou: "Acho que é preciso intervir na Petrobras". Um ano depois da morte de Francis, em 1998, efetivamente o fez: assinou decreto eximindo a estatal de se submeter à Lei das Licitações. Segundo o douto Eduardo Cunha foi o que "abriu a porteira". (Imagino agora o que Francis diria sobre Vossa Excrescência.)
No documentário "Caro Francis" (Nelson Hoineff, 2010), o ex-presidente conta que pediu para que Rennó retirasse a ação da Justiça. Quando perguntado sobre sua reação, FHC pergunta ao entrevistador: "Acho que ele não retirou a ação. Não sei. (longa pausa) Ele retirou a ação?" Não retirou. Francis, que teve sua fase de entusiasmo por FHC, de quem chegou a se dizer amigo pessoal, morreu antes disso.
Mesmo que os bilhões de dólares desviados na época não pareçam suficientes, e sabemos que a conjuntura política indica cobrir apenas a roubalheira dos anos PT, o leitor dialético que fui (e ainda sou) de Paulo Francis gostaria que o tema voltasse à imprensa e ao Judiciário –nem que fosse apenas por respeito à sua memória.
Certos crimes não deveriam prescrever. Na Lava Jato há muitos, e um deles é contra um escritor brasileiro. E, bom não esquecer, contra a liberdade de expressão de um jornalista, na época contratado da TV Globo.