A sala 206 do Museu Reina Sofia (calle Santa Isabel, 52, Madri) não tem bancos. Exige-se do espectador que se poste de pé em frente ao gigantesco quadro. Picasso pintou "Guernica" sob o impacto do massacre de civis na pequena cidade basca de mesmo nome pelos aviões da Legião Condor, força aérea alemã na Espanha sob o comando direto do General Franco em 1937.
Uma tonelada e 300 quilos de bombas incendiaram a cidade, deixando mais de 1.600 mortos.
Para ver o quadro é preciso passar bolsas e casacos por uma máquina de raio-X, na entrada do museu. Estamos a duas centenas de metros da estação de trem de Atocha, onde em 2004 um atentado da Al Qaeda matou 191 pessoas. "Guernica" conta também essa tragédia, e sobrevive porque talvez conte melhor do que qualquer obra que veio depois dele.
Tanto já se escreveu sobre o quadro que é difícil não deixar que suas inúmeras leituras eclipsem a obra em si. Ele também já foi tão reproduzido que produz aquela sensação de déjà vu ou parque temático que se tem ao ver obras como "O Jardim das Delícias", de Hieronymus Bosch, ou "As Meninas", de Velázquez, a poucas quadras daqui, no Museu do Prado. Na primeira vez, é preciso gastar certo tempo na frente dele para finalmente começar a vê-lo.
Tenho uma ponta de inveja do grupo de crianças de seis anos de idade que escuta da professora a seguinte apresentação: "Esse é o quadro mais importante do museu. O senhor que o pintou se chamava Picasso e o quadro se chama Guernica'. Vamos ficar aqui um pouquinho vendo o quadro e já vamos embora". Depois do introdutório, ficam sentados, cochichando entre si, e eu pagaria tudo o que tenho no bolso para ter o olhar deles sobre o que veem.
A obra é terrível. "Guernica" é um quadro que grita, um lugar onde lágrimas são flechas que os arregalados olhos cospem –e com essas setas Picasso traça a geometria monstruosa da tragédia humana em escala industrial, num século que transformou massacres em abstrações. Aqui há algo de sublime que o faz sentir como um Kant apreciando em silêncio o tsunami de 2004 no topo de um prédio. Ou como o adolescente eufórico e chapado de adrenalina vendo um filme de desastre.
As décadas que nos separam da obra e da Guerra Civil Espanhola guardam milhares de tragédias do gênero. No meio do caminho, algo aconteceu com a representação. Penso nisso ao me perguntar, na frente do quadro, qual seria o "Guernica" do 11 de Setembro ou dos recentes massacres perpetrados por israelenses, norte-americanos e seus aliados no Oriente Médio. Explosões muitas vezes transmitidas ao vivo pela TV, desgraças a que assistimos fascinados com o controle remoto nas mãos.
Seis dias depois que as torres caíram em Nova York, Stockhausen, compositor alemão de música contemporânea, disse, em declaração muito tirada de contexto na época: "O que aconteceu lá, e agora todos vocês têm de reajustar seus cérebros, é a maior obra de arte que já existiu".
Ele relacionava os atentados a Lúcifer no contexto de uma obra recém-lançada. De qualquer forma, a questão se coloca: o que acontece com a arte depois que o impossível aconteceu e foi testemunhado por todo o planeta? Algo pode ser transgressor e ir além do real depois disso?
"Alguém haveria de pintar uma Guernica' sobre esta outra Guernica', a da representação", eu penso enquanto as crianças saem da sala de mãos dadas, ainda felizes.