Folha de S. Paulo


Para animar a torcida

A pessoa normal, seja isso o que for, pode lapidar seu temperamento com remédio para depressão. Pode ampliar a tolerância em relação a outros.

Depois de usar a droga sem precisar, um voluntário percebeu-se brincalhão no trabalho e mais paciente para acompanhar a mulher nas compras -olhe que coisa prática.

O relato foi exibido semana passada, em congresso científico que passou longe do consenso sobre antidepressivos. Mas levantou boas questões. Uma: se é papel do psiquiatra tratar sentimentos que até ontem eram comuns (já que concepções de doença mental quase nunca são verdades científicas atemporais). Outra: se as drogas alteram a personalidade. E se deve-se mexer no humor "normal".

Discussões importantes. Só que o uso social dos Prozacs da vida já é leite derramado.

Receitas de antidepressivos são passadas a torto e a direito, por médicos de qualquer especialidade. Todos podem, a lei não proíbe. Há quem saia de retorno ortopédico com prescrição porque, sabe como é, dor deprime. E há quem tente o tratamento com a meta exclusiva (e duvidosa) de perder peso. Como pode?

Depressões graves às vezes nem são diagnosticadas, que dirá tratadas. Enquanto isso, reguladores de humor já são usados como facilitadores do convívio, e o espectro de emoções medicalizáveis se alarga.

É loucura ou avanço o fato de, mesmo sem entrar na classificação precisa de deprimida, a pessoa sentir o alívio da vida emocional horizontalizada, sem graves nem agudos?

O voluntário do estudo, um dos "normais" que, sob a força da droga, sentiram tudo ficar mais leve, nem assim seguiria tomando. "É artificial", disse.

E o que não é? Se o álcool é aceito como estimulante do desempenho social, e se exercícios físicos também alteram o humor, qual é o problema com os remédios -provocam pesquisadores. Segundo alguns, o que há é preconceito.

Imagine se não houvesse.

As drogas para a "dor da alma" já são a quarta classe no ranking dos mais vendidos no país. As vendas aumentaram 48% em cinco anos. Só de fluoxetina, antidepressivo entre os mais populares da nova geração, foram consumidas três toneladas em 2009.

Psiquiatras dizem que, até por conhecer de forma mais profunda os efeitos colaterais desses medicamentos, a sua categoria é mais parcimoniosa do que outras nas prescrições.

Deve ser. Mas psiquiatras negligenciam queixas dos pacientes sobre desconfortos, diz um trabalho no "Journal of Clinical Psychiatry", para concluir que as pesquisas dessas drogas, como são bancadas pela indústria farmacêutica, subestimam efeitos colaterais.

Não fossem eles, os tremores, as náuseas, o fim da libido etc., seria ainda maior a adesão a esse programa mundial de animação perpétua e imunização contra sofrimento.

HELOÍSA HELVÉCIA é editora de Equilíbrio e Saúde.


Endereço da página: