Folha de S. Paulo


Mundos alternativos

Brendan Smialowski/AFP
O presidente dos EUA, Donald Trump, exibe assinatura em documento

SÃO PAULO - É fácil caçoar da noção de fatos alternativos proposta pela administração Trump. Mas será que nós também não recorremos a eles, ainda que sem percebê-lo? Eu receio que sim, tanto no plano individual como no coletivo.

Um bom exemplo é a falsa controvérsia em torno de quem inventou o avião. Aqui no Brasil, nossas escolas ainda ensinam que foi Santos Dumont, o que é demonstravelmente falso. O famoso 14-bis fez seu voo oficial em Paris em novembro de 1906, quando os irmãos Wright já voavam pelo menos desde 1903 nas várias versões de seu Flyer. Em 1905, seu aparelho percorreu 39 km no ar (o 14-bis voou míseros 220 metros).

Como nem Trump ousaria sugerir que 1906 antecede 1903, brasileiros que insistem no mito dumontiano precisam recorrer a uma série de fatos alternativos, como o de que os Flyer precisavam ser lançados por catapultas, que Leandro Narloch desmonta com elegância e riqueza de detalhes em seu "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil".

Outra inverdade de inspiração levemente nacionalista muito repetida por nossas bandas é a história de que a palavra "saudade" não encontra tradução em nenhuma língua do mundo. É claro que isso é rematada bobagem. Seguem alguns equivalentes: os russos têm "toska"; alemães, "Sehnsucht"; árabes, "shauck" e também "hanim"; armênios, "garod"; sérvios e croatas, "jal"; letões, "ilgas"; japoneses, "natsukashi"; macedônios, "nedôstatok"; húngaros, "sóvárgás". Os amantes de línguas clássicas podem acrescentar a essa lista o "desiderium" latino e o "póthos" dos antigos gregos.

Ora, se até os cães parecem sentir saudades de seus donos quando deles ficam separados, seria de um etnocentrismo despropositado acreditar que esse sentimento é próprio apenas aos que falam português. Para sustentar a tese da exclusividade, é necessário recorrer a uma realidade alternativa e não a meros fatos.


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