Folha de S. Paulo


Lições de Santa Maria

Precisamos aproveitar casos como o da tragédia de Santa Maria para entender o que não entendemos acerca do risco em geral --uma informação valiosa tanto para compreender melhor a mente humana como para aprimorar a gestão da defesa civil.

O primeiro ponto a esclarecer é que nossa espécie é péssima em estimar as chances de ocorrência de qualquer fenômeno que fuja à escala de nossa experiência cotidiana. Como escrevi numa coluna para a edição impressa publicada na semana passada, "quando lidamos com riscos que não fazem parte de nosso dia a dia, ou agimos como se eles não existissem ou como se fossem uma sentença de morte. O mais realista meio-termo desaparece".

Há sólidas razões darwinianas para isso. Pelo menos desde Platão, gostamos de nos imaginar como um animal racional, que pauta suas principais decisões pela lógica. A verdade, contudo, é que as funções cognitivas ditas superiores são uma aquisição evolutiva muito recente. Só chegamos perto do ponto de contar com um cérebro grande e que pode exercitar a razão porque, a exemplo de todos os outros animais, já possuíamos um sistema de detecção de perigos que garantiu a sobrevivência de alguns indivíduos e perpetuação da espécie.

Quando você dá de cara com um leão, simplesmente sai correndo. Não se preocupa em saber se ele está ou não faminto ou mesmo se é realmente um leão. Tudo o que tenha um formato que lembre vagamente o do predador já basta para colocar-nos em alerta máximo. São reações automáticas moldadas por milhões de anos de evolução e que se traduzem em emoções viscerais como medo, pânico, nojo etc. Não precisamos pensar antes de recusar comida estragada ou fugir de um touro bravio.

Esse sistema mais animalesco não foi desligado com o advento da razão, que apenas acrescentou um segundo modo de percepção do risco, baseado em algoritmos, cálculo probabilístico e lógica formal. É um sistema analítico, abstrato, lento e que exige reflexão antes de traduzir-se em ações.

A simples existência de dois modos distintos já explica algumas de nossas idiossincrasias: temos um pavor injustificado de ameaças que sabemos quase inexistentes em ambientes urbanos modernos, como cobras e tubarões, mas nos expomos prazerosamente a perigos reais, como tabaco e carros velozes.

E isso é apenas parte da história. Mesmo o sistema analítico, supostamente racional, muito por interferências do modo visceral, carrega uma série de vieses que o tornam um verdadeiro campo minado. Nos últimos anos, após os trabalhos pioneiros de Daniel Kahneman e Amos Tversky na área da ciência cognitiva, acumulamos um impressionante catálogo das falhas de raciocínio que vêm embutidas na nossa forma de pensar.

Um de meus exemplos favoritos diz respeito à dificuldade de processar porcentagens. Num já clássico experimento de 1997, médicos treinados julgaram uma doença que mata 1.286 pessoas de cada 10.000 --12,86%-- como mais grave do que uma com taxa de mortalidade de 20%. Aqui, eles se deixaram enganar pela concretude das 1.286 vítimas contra a abstração da frequência de 20%.

É nesse contexto neuronal muito pouco promissor que tentamos dar sentido às informações que recebemos sobre tragédias como a de Santa Maria. Apenas ouvir a notícia já ativa o sistema automático. O destaque aí são as amígdalas, estruturas cerebrais localizadas nos lobos temporais associadas à memória e ao aprendizado emocionais, notadamente o medo. Elas são um órgão meio paranoico de sobrevivência. Estão sempre esperando pelo pior e prontas a disparar para nos dar uma chance de sobreviver.

O problema com as amígdalas é que elas não sabem fazer contas nem estimar riscos e voltam a ser ativadas a cada nova notícia dramática que lemos sobre o incêndio da discoteca. Como o modo experiencial é emocionalmente intenso, muitos de nós ficam com a sensação de que o fogo em boates (ou qualquer outra tragédia da hora) são uma ameaça iminente e não um risco ponderável.

É claro que as amígdalas não são soberanas --o cérebro, vale lembrar, é uma cacofonia de módulos e sistemas onde vence quem grita mais alto. Com um pouco de treino, sua atividade pode ser inibida por ordem do sistema racional, sediado no córtex pré-frontal. Quem exercita muito essa área pode facilmente se convencer de que incêndios quase nunca são um problema.

O risco de fato não é dos mais elevados. De acordo com o Datasus, morreram no Brasil em 2010 (último ano disponível) 953 pessoas em consequência da exposição à fumaça ou ao fogo. Isso representa 0,08% do total de 1.136.947 óbitos registrados no país naquele ano, ou 0,66% das 143.256 mortes provocadas por causas externas.

O sujeito que quiser ganhar alguns cobres deixando de comprar equipamentos e materiais antifogo tem grande possibilidade de se dar bem, já que incêndios são relativamente raros. A esmagadora maioria das pessoas vive seus setenta e tantos anos de vida sem passar por nenhum incêndio. Mesmo o administrador público bem-intencionado não costuma dar muita atenção a esse capítulo. Ele consegue um retorno maior tanto em termos econômicos como humanos se dedicar seus esforços a combater riscos que provocam maior número de óbitos como quedas (10.426 mortes em 2010), atropelamentos (9.944) ou afogamentos (5.548).

O problema com esses eventos mais ou menos raros é que, mesmo ocorrendo poucas vezes, podem produzir perdas catastróficas, como se verificou em Santa Maria. Trata-se, portanto, de um assunto que não será resolvido pelas chamadas forças de mercado. Individualmente, faz sentido apostar que não ocorrerá nenhum incêndio neste ou naquele estabelecimento
específico e embolsar a economia resultante. Em termos atuariais, entretanto, sabemos que, num dado período, ocorrerá um certo número de desastres. É como a loteria. A chance de eu ou qualquer outra pessoa em particular ganhar o prêmio é irrisória, mas é quase certo que alguém o faturará.

O jogo só muda se houver uma regulamentação em nível de Estado e prefeituras que seja cumprida sob pena de multas relativamente pesadas. Aí já não estamos falando de um risco abstrato e relativamente pequeno, mas sim da experiência mais cotidiana de lidar com fiscais e autos de infração.

Voltando a nossos cérebros, as amígdalas não ficam, é claro, disparando para sempre. À medida que o tempo passa, nos habituamos ao noticiário que também vai ficando cada vez mais esparso até quase desaparecer. Hoje autoridades de todo o Brasil estão escarafunchando discotecas em busca de falhas de segurança e fechando estabelecimentos, mas esse é um estado transitório. Dentro de mais algumas semanas, tudo deverá voltar mais ou menos à situação anterior. Já vimos esse filme diversas vezes e com vários enredos: o naufrágio do "Bateau Mouche" no Rio em 1988, a explosão do Osasco Plaza Shopping em 1996 e as repetidas tragédias provocadas pelas chuvas, como as de Ilha Grande, em 2010, ou da região serrana do Rio, no ano seguinte. Em todas essas situações, encenamos uma grande reviravolta que prometia mudanças profundas e duradouras na regulação e fiscalização, mas não tardou até que esquecêssemos o assunto, com avanços que ficam em algum ponto entre o nulo e o modesto.

A pergunta é: como proceder nessas situações? O que podemos fazer para que as ações se tornem mais efetivas? Daniel Kahneman, no livro "Rápido e Devagar", traz um bom resumo de a quantas anda o debate sobre o papel de especialistas na percepção do risco. Pincelei essa questão na coluna "A psiocologia da tragédia", à qual já aludi alguns parágrafos acima.

Paul Slovic, que é provavelmente a maior autoridade do mundo em psicologia do risco, apresenta uma visão moderadamente pessimista do problema. Para ele, o especialista é um sujeito com os mesmos vieses do cidadão comum, mas com maior capacidade de nos engambelar. Não devemos confiar neles.

Para Slovic, a própria noção de risco objetivo é menos objetiva do que parece. Ele demonstra isso descrevendo de nove maneiras diferentes a mortalidade associada à poluição. Se utilizamos a notação de mortes por milhão de habitantes, obtemos um determinado efeito na opinião pública, mas, se recorremos à noção de mortes por milhão de dólares produzidos, o resultado é bem diferente. Qual o conceito mais objetivo? Aqui não existe resposta certa.

Slovic sustenta que não há melhor juiz do que o senso comum. Em muitos casos, a percepção dos cidadãos, ao introduzir noções meio metafísicas intraduzíveis em fórmulas, como mortes boas ou ruins, é até mais sofisticada do que a visão dos especialistas, fortemente restringida pela mensurabilidade.

Na ótica do psicólogo, devemos aproveitar casos de comoção motivados por catástrofes para melhorar um pouco o marco regulatório e reservar quinhões do orçamento para reduzir os perigos. A democracia é necessariamente um pouco confusa e os avanços vêm através de surtos de pânico.

Cass Sunstein, originalmente um jurista, mas que se tornou um dos mais influentes especialistas em economia comportamental, tem um projeto mais iluminista. Ele acha que especialistas têm algo a ensinar e que apenas reagir instintivamente às notícias de jornal pode causar mais mal do que bem.

Um exemplo real: após os atentados de 11 de Setembro, muitos norte-americanos acabaram desenvolvendo um medo meio irracional do terrorismo, o que os fez trocar o mais seguro transporte aéreo por longas e perigosas viagens de carro, gerando um excesso de mortes desnecessárias.

O papel do especialista, na visão de Sunstein, é alertar para os vieses que marcam a nossa percepção do risco, como o fato de tendermos a negligenciar informações estatísticas.

Conhecendo melhor as formas pelas quais nossas mentes gostam de errar, criamos as oportunidades para corrigir nossas falhas e tomar atitudes mais consistentes. Mesmo que o risco objetivo seja uma ficção, ainda existem maneiras mais ou menos fantasiosas de abordá-lo.

Como o leitor já deve ter percebido, eu pendo mais para o lado de Sunstein do que o de Slovic, ou não me teria dado ao trabalho de escrever tão longamente sobre o assunto.


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