Folha de S. Paulo


Feridas abertas

A surpreendente detenção do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em Londres, desencadeou uma avalanche de discussões jurídicas, políticas, ideológicas e históricas. O processo está apenas começando e promete revolver o passado não só do Chile, mas de outros países latino-americanos, dos Estados Unidos e da Europa.
Afinal, neste mundo de Justiça também globalizada, em vários continentes há personagens envolvidas na era Pinochet. O que parecia ter sido colocado debaixo do tapete da história, de repente, por obra de um audacioso juiz espanhol, ressurge como uma ferida antiga que recebe um novo golpe.
No Chile, a questão foi para as ruas. De um lado, comemorações e estouro de champanhe nas praças. De outro, parlamentares ameaçando "greve" contra o que chamam de sequestro.
Refém ainda do espólio político e militar do ex-ditador, o governo chileno tenta se equilibrar, temendo uma reação mais contundente das Forças Armadas locais. Protesta oficialmente contra a detenção, mas fica aflito com os problemas comerciais que um esfriamento nas relações com a Grã-Bretanha e a Espanha pode provocar.
Não é boa hora para mais complicações. O outrora elogiado modelo chileno enfrenta turbulências. A moeda sofreu ataque, o juro foi elevado, e os preços do cobre, o principal produto de exportação, despencaram. O crescimento deve ficar na metade do projetado. Fissuras no delicado xadrez político só prejudicariam o cenário local.
Na Grã-Bretanha, onde Pinochet gostava de comprar gravatas, o processo divide opiniões. Aliado de Margaret Thatcher, com quem tomou chá dias antes da detenção, o general deve ter o apoio de conservadores. Rumores dão conta de que ele se abastecia de armas na terra da dama de ferro.
Já para Tony Blair, a extradição de Pinochet seria uma oportunidade de mostrar ao eleitorado mais radical seu comprometimento com a esquerda.
Na Espanha, de onde saiu a acusação formal de genocídio, tortura e terrorismo contra o ex-ditador, o governo (de direita) também sofre tiroteio político. Apoiadores de Pinochet perguntam o que foi feito com Francisco Franco. O premiê espanhol tenta escapar do enrosco voltando suas baterias contra Fidel Castro -ele deveria sofrer perseguição igual?, pergunta José Aznar.
Fidel não deixa a bola cair e elogia a detenção do ponto de vista moral. Diz ter dúvidas sobre a validade jurídica do processo e temer que o velho Pinochet se transforme em mártir da direita.
Nos Estados Unidos, inimigos do cubano se agitam, e o governo teme que o caso reacenda a controvertida ação norte-americana no golpe de 73, que matou mais de 3.000 opositores de Pinochet (não só os 94 citados pelo juiz Baltasar Garzón).
Na Argentina, o clima não deve estar ameno. O mesmo juiz espanhol já pediu o embargo dos bens de 152 militares do tempo da ditadura envolvidos no desaparecimento de políticos.
O caso Pinochet pode respingar também no Uruguai, Paraguai e Brasil. Há indícios de ações conjuntas das forças armadas contra grupos de oposição -a chamada Operação Condor. Histórias sempre escondidas podem vir à luz.


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