Folha de S. Paulo


Votar com o coração ou o bolso

Justin Tallis/AFP
Taxista de Londres segura adesivo da campanha para que o Reino Unido deixe a União Europeia
Taxista de Londres segura adesivo da campanha para que o Reino Unido deixe a União Europeia

Só mesmo recorrendo a uma velhíssima piada para explicar a resistência dos adeptos do Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia) à catarata de previsões apocalípticas sobre as consequências da saída.

É aquela história do inglês, que, vendo a intensa névoa que cobre o Canal da Mancha, comenta: "O continente está isolado".

É típico do adorável humor britânico, mas também revelador do estado d'alma de uma parte importante dos súditos da rainha: para eles, uma coisa é a Europa, outra são as ilhas britânicas. Não se misturam.

Se, de todo modo, ganhar o não ao divórcio com a Europa, será pela carteira, jamais pelo sentimento. Afinal, até o geralmente sóbrio Fundo Monetário Internacional acaba de divulgar estudo em que afirma que deixar a União Europeia afetaria o padrão de vida dos britânicos, atiçaria a inflação e faria evaporar 5,5% da riqueza nacional.

Se, no Brasil, com uma queda menor (3,8% no ano passado), houve toda a fúria contra o governo então no trono, era de se supor que um desastre tão formidável no Reino Unido tornaria inexorável votar contra o Brexit.

Mas essas questões econômicas não são o elemento principal a mover o eleitor. "Não creio que o grosso da população entenda bem os cálculos que se apresentam pró e contra a saída do Reino Unido da União Europeia", disse à Folha John Carlin, excelente jornalista e escritor.

Reforça Phoe­be Ar­nold, di­reto­ra da cam­panha sobre o referendo na em­pre­sa de con­ferência independente de dados Full Fact:

"Os mesmos dados [econômicos] podem servir a um ou ao outro lado. No fim das contas, os votantes decidirão com o coração."

E o coração dos britânicos é britânico, não europeu: só 15% dos britânicos, na média, se identificam como europeus. Os demais são, antes de mais nada, ou ingleses ou escoceses ou irlandeses ou galeses, as quatro tribos que convivem no território do Reino Unido.

Para John Carlin, essas identidades nacionais açularam um "populismo xenófobo, que resultou ser a arma mais eficaz para convencer os eleitores a votar pela saída da UE".

O curioso é que essa xenofobia não é abrangente. Às vezes, caminhar por Londres dá a sensação de que se veem mais turbantes dos sikhs do que na Índia. Não é verdade, claro, mas indica que eles não se sentem constrangidos na multicultural capital britânica.

Da mesma forma, há uma área de Londres, saindo do Marble Arch, um dos monumentos centrais, em que há tanta gente fumando narguilé que o apelido da região é "Londonistan".

Suspeito não ser exagerado dizer que o populismo xenófobo dirige-se muito mais aos novos imigrantes, em especial do Leste Europeu, do que aos imigrantes em geral.

Confirma essa sensação empírica uma frase ao jornal "El País" do taxista aposentado Ma­sum Go­ra, que emigrou da Índia faz 60 anos: "Os i­mi­gran­tes con­tri­buí­mos com este país, mas agora há demasiados poloneses, romenos, hún­ga­ros".

Hoje se saberá se a maioria dos britânicos concorda com ele e resolverá pôr mais do que névoa para isolar o continente.


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