Folha de S. Paulo


Regras e menopausa

Deus é testemunha de que nada tenho contra os gramáticos, um dos meus maiores amigos é o mestre Evanildo Bechara, cuja cultura e bom senso superam as picuinhas armadas, não se sabe por quem, que ficaram condensadas na chamada "norma culta" que é ensinada nos colégios e desprezada pelo vulgo, vale dizer, por todos nós que falamos e escrevemos errado.

Com o advento dos manuais de redação, adotados pelos principais veículos de comunicação do país e de grande parte do mundo, uma classe pitoresca de gramáticos assumiu o comando do idioma e passou a ditar regras que os profissionais da imprensa, inseguros dos segredos e ciladas da língua, acatam forçadamente, sem qualquer entusiasmo.

Respeitam sem refletir regrinhas bobas, daí que, no domingo, lendo jornais e revistas para saber se o mundo ainda vale a pena, decidi anotar alguns desses modismos que não chegaram ao uso da plebe que simpaticamente continua falando errado.

Somente para dar alguns exemplos: temos a consagração do "apesar de", que antigamente fazia a inevitável contração com o artigo (masculino ou feminino) que se seguia. Dizia-se, sem ferir a regra e o ouvido, "apesar disso ou daquilo" etc. Descobriram que não deve haver contração, daí que todos começaram a escrever: "apesar de o esforço". "Apesar de sua fortuna, continuava roubando apesar de a consciência reprová-lo."

Bolas, a prevalecer o critério que suprime a contração, não mais haveria motivo para contrair preposição com artigo. Deveria dizer-se: "Em o restaurante tal", "em o próximo sábado", substituindo-se os tradicionais "no restaurante tal" e "no próximo sábado".

Obedecendo essas regrinhas e outras da norma culta, que volta e meia entram ou saem de moda, 99% dos livros escritos no Brasil e Portugal estariam errados. Clássicos como Machado de Assis, Eça de Queiróz, Vieira e Camões teriam de aprender o idioma no qual foram mestres.

Aliás, não é apenas em matéria gramatical que as regras em geral conflitam com o uso do povo que se entende ou desentende à sua maneira e conveniência.

É o caso que já lembrei em crônica antiga do tradicional uso de "um chope e dois pastel". Todo mundo sabe ou deve saber o que é um pastel. Não existem "pastéis". Como não existem "dois lapises" quando nos referimos a mais de um lápis. Obedece-se à regra que o "esse" em determinados casos serve tanto para o plural como para o singular. Não se diz "fez" na suposição de que "fezes" é coisa plural em si mesma.

São muitos os exemplos que poderia citar, mas basta lembrar um deles que está atualmente em grande moda: presidente ou presidenta? É uma diferença que transcende o bom uso da língua, passando a ser uma definição ideológica e política de quem usa uma ou outra forma vocabular. Quando alguém escreve ou diz "presidenta" para se referir à dona Dilma, trata-se de alguém do PT ou do governo em suas muitas esferas.

Graciliano Ramos, que durante anos foi revisor num jornal carioca, recusava qualquer texto que tivesse a palavra "entrementes". Pessoalmente, sinto um frio na espinha quando me deparo com algumas palavras ou construções de estilo, como "por outro lado", que consegue juntar o alho com o bugalho. Exemplo: "O papa virá ao Brasil. Por outro lado, as chuvas não virão para o nordeste".

Entrementes, e por outro lado, estou aqui ditando regras, lembrando de passagem o Adolpho Bloch que jogou na cesta um texto, nada mais nada menos que de Otto Lara Resende, o grande cronista da "Manchete".

O famoso cronista, escrevendo sobre uma polêmica entre dois juristas, referiu-se a um deles como portador de "uma robusta argumentação". Otto foi reclamar com o dono da revista, que o despachou com um robusto argumento: "Seu Otto, aqui na 'Manchete', só o bebê Johnson é robusto".

Por tudo isso, em matéria de regras, sou a favor da menopausa dos gramáticos. E em matéria de uso ou abuso de palavras, sempre me inquieto quando leio numa resenha esportiva que algum lance foi decidido na base da "morte súbita".


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