Folha de S. Paulo


Relatório final

Chegou o momento do balanço desses dois anos de mandato como defensor do leitor. Foram quase vinte mil reclamações processadas. O atestado de eficácia mais visível é o de que se transformou no jornal que mais admite erros no Brasil. Gráfico reproduzido nesta página demonstra a evolução das retificações. Elas pularam de uma média mensal de 12 em agosto de 1989 (quando não existia o ombudsman) para 118 neste ano. A unificação dos Erramos na terceira, página, em fevereiro passado, contribuiu muito para esse salto.

Reconhecer erros, porém, não é tudo. Nem proporciona atestado definitivo de qualidade. Muito mais importante é deixar de cometer erros. Ou garantir o direito de resposta a quem o requer por sentir-se injustiçado.

Não foi possível fazer levantamento completo do tratamento dado pela Folha ao direito de reposta no período (porque ele está espalhado em reportagens refeitas, novas notas, declarações posteriores, etc.), mas um trabalho realizado pelo Banco de Dados atesta que a média de direito de resposta publicado apenas na seção de cartas subiu de 30 respostas mensais em 1989 para 38 anos oito primeiros meses de 1991.

Dar direito de resposta, convenhamos, também não é mérito em si. Principalmente porque ele quase nunca aparece no exato dia seguinte e nem da mesma forma pela qual se publicou a notícia geradora da defesa. Em geral, uma manchete título ou nota caluniosa provoca efeitos tão devastadores na reputação de uma pessoa, empresa ou instituição, que o direito de resposta, quando publicado em página interna e sem destaque, jamais consegue recuperar. De resto, nem nas democracias mais modernas consegui-se resolver a contento o problema do direito de resposta. A impotência do cidadão ante a prepotência da mídia segue dramática. Um dos jornalistas que propôs a criação do ombudsman nos jornais nos anos sessenta. Abe H. Raskin, diagnosticou mais de vinte anos depois que a imprensa continua pela "insolência, miopia e uma ética ambígua".

Sempre me perguntam se a Folha "melhorou" com o ombudsman. Não melhorou nem piorou. Ela continua em busca permanente do aperfeiçoamento. O maior mérito do cargo foi ter facilitado a comunicação do leitor com a Redação. Mesmo assim, sobra desinformação. Conforme pesquisa do DataFolha, mais de um terço dos leitores não sabem quais são as principais funções do ombudsman.

Tornar esse serviço ainda mais conhecido é uma das tarrefas do jornal e do novo ombudsman, o jornalista Mario Vitor Santos.

Quanto ao jornal, é minha obrigação registrar alguns problemas candentes que merecem ser resolvidos para o bem do leitor. A saber:

Desatenção - Muitas vezes avalia-se muito mal uma notícia e quando o jornal a publica não dá destaque. Então, corre para enfrentar o prejuízo.

Na semana passada há o exemplo das irregularidades na LBA. Enquanto outros jornais destacaram na quarta-feira que o presidente Collor pedira a Romeu Tuma, da Polícia Federal, a prisão do ex-superintendente da LBA em São Paulo por causa de irregularidades apuradas, a Folha só conseguiu dar essa notícia, por inteiro, na quinta-feira. E a transformou em manchete: "Prendam alguém na LBA, pede Collor". O fato tinha aparecido apenas parcialmente no jornal da véspera.

Sensacionalismo - Costuma-se exagerar em certas interpretações. Essa manchete do "prendam alguém", pode ser considerada sensacionalista, apesar de sintetizar com maestria um dos problemas enfrentados pelo presidente da República: mostra ao povo que se combate a corrupção. O sensacionalismo esteve em manchetes com vôos de interpretação, como aquela do "fim" da URSS e da era Gobatchev (recentes), a do "adiamento" da unificação européia (outubro de 1990) ou na guerra do Iraque quando se afirmou erroneamente ter Israel ataque depois de sofrer bombardeio com armas químicas (janeiro passado) - para ficar em manchete equivocadas, as quais não foram objeto de retificação.

Comodismo - O crítico do jornal costuma apontar e discutir erros ou imprecisões. Apontá-los não significa a correção do problema. O leitor merece palavra oficial da Redação no sentido de defender seu ponto de vista ou reconhecer o erro.

Esquizofrenia - Trata-se do tratamento desigual dado a fatos com conteúdo político ou problemas relativos à tal ética ambígua. Exemplo recente foi quando se noticiou que os governadores haviam negado acordo para o emendão do governo Collor e dois dias depois esqueceu-se de destacar que o governo havia sofrido realmente uma derrota na Câmara dos Deputados, na aprovação da indexação salarial. Ou seja: o jornal exagerou interpretando algo não acontecido (o desapoio dos governadores) e não explicou em manchete que o governo Collor fora derrotado quando isso efetivamente aconteceu. No outro caso, da ética ambígua, ele deixa de noticiar sequestros em andamento quando até as emissoras de televisão aboliram essa norma de avestruz, a de omitir a notícia de sequestro num país em clima de terrorismo civil.

Salada editorial - Apareceu com a reforma gráfica de fevereiro. O fechamento antecipado das editorias traz para o caderno Brasil coisas tão dispares quanto a coluna de Mortes, o resultado do futebol ou o crime da noite.

Jornal é hábito. Esse constante salto de assuntos de um lugar para outro não cria hábito nenhum e acaba irritando o leitor. A mesma salada deu sumiço ao Esporte, que perdeu até seu caderno diário. Idem para o antigo caderno de Negócios. Mal disfarçado no caderno Dinheiro, ele não reencontrou a identidade que lhe garantiu fama e leitores.

Síntese capenga - Desenvolveu-se um sistema de modulação que requer textos curtos e concisos. Devem combinar a informação principal com o detalhe revelador em cada notícia, tenha ela cinco ou dez linhas. Apenas nos textos dos "medalhões" se consegue boa. O restante dos textos, vazados em mau português (média diária de 119 erros em agosto), carece não apenas de detalhes mas de informação fundamentais para a compreensão da notícia.

Eterno declaratório - O jornalismo brasileiro continua baseado nas declarações dadas pelos personagens das notícias. A Folha sofre muito com isso. Na maioria das vezes, a informação correta é exatamente o contrário daquela enunciada, mesmo quando aparece da maneira exata como foi dita (o que é raro). A informação colhida nos bastidores, cruzada com outras fontes, pode revelar mais do que uma declaração formal - principalmente quando vem de ocupantes do poder. Seja poder governamental, partidário, empresarial, intelectual ou sindical. Seria benéfico se se extirpasse do jornalismo essa mania de transcrição literal de declarações, encheção de linguiça sem a informação (ou análise) complementar para situá-la no contexto e na verdade dos fatos. Cabe a todo jornalista desenvolver o distanciamento crítico. Duvidar. Ceticismo é qualidade fundamental nesse negócio das notícias.

Omissão sindical - Cobre-se mal o sindicalismo brasileiro. Por dois motivos principais:

1. A grande imprensa é parte do "establishment" e mesmo os jornais mais independentes relegam ao segundo plano as lides sindicais.

2. De sua parte, são poucos os sindicatos capazes de ter um competente serviço de relações públicas (aparece mais quem trabalha melhor o seu marketing, regra do jogo numa sociedade de mercado).

A Folha é o jornal mais aparelhado do "establishment" para cobrir o sindicalismo brasileiro porque é o mais independente. Tem mais condições de acompanhar os conflitos trabalhistas com busca de isenção. Contudo, quem acompanhou, pôde sentir o enorme desleixo com o qual se tratou, por exemplo, a greve dos professores e servidores da escolas e universidades federais. Erro de estratégia, ademais, quando se leva em conta o tamanho do professorado e a quantidade de leitores perdida com o descaso para com movimento grevista de mais de cem dias.

Espaço para o leitor - As enormes cartas explicativas de autoridades ou personalidades que invadem o Painel do Leitor ocupam espaço privilegiado do leitor, mesmo configurado inequívoco direito de resposta. Nesse sentido, seria interessante tanto para os eventos ofendidos quanto para os leitores que fosse aberto um local próprio para o chamado direito de resposta. Cada carta dessa teria espaço proporcional ao material contestado e comportaria títulos com destaque. Nenhum jornal faz isso de forma sistemática. Seria mais um ponto desta Folha em credibilidade e deixaria a seção tradicional de cartas ao seu dono: o leitor.

Eram essas as observações que eu queria fazer. O mandato do ombudsman é de um ano renovável por apenas mais um ano. Fim. Cumpri os dois anos e agora acabou. Agradeço imensamente aos leitores que acreditaram, procuraram o ombudsman. O perfil desses simpáticos "reclamações" pode ser conferido nos quadros aqui inseridos, fruto de uma pesquisa realizada por mim durante o mandato - nos primeiros 20 meses manualmente e depois com a ajuda de um computador. Sem esses leitores e a coragem da Folha em criar e manter a função, a instituição não seria realidade.

Por tudo isso, decidi sistematizar essa experiência num livro, "O Relógio de Pascal", editado pela Siciliano. Será lançado aqui na Folha na terça-feira a partir das 19h, no 9° andar. Você, leitor está convidado.


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