Folha de S. Paulo


Pílulas da crítica diária

Foram muitos os problemas da Folha na semana que passou. Todos relatados na coluna diária que faço e circula na Redação, nas sucursais e entre os correspondentes. Como a maioria dos problemas já foi abordada nessas críticas internas, tomo a liberdade de reproduzir alguns dos itens, talvez os mais significativos da semana. Assim você fica sabendo também como é essa crítica. Por ordem de importância:

VITÓRIA - A noite de quarta-feira foi uma daquela em que havia razão suficiente para os jornais esperaram um pouco antes de fecharem suas edições de quinta-feira. A Folha optou por encerrar seu primeiro clichê às 22h (conforme relógio de capa) e os leitores que o receberam tiveram uma manchete defasada pelos fatos da noite de quarta-feira mesmo: "Coalização chega a 240km de Bagdá". Uma hora depois do fechamento da edição, o presidente George Bush estava anunciando a vitória das forças de coalizão e suspendendo a ofensiva militar no Iraque. Para os leitores do primeiro clichê, Bush "deveria anunciar formalmente aos norte-americanos a libertação completa do território do Kuait". Ele disse mais e só os leitores dos outros clichês ficaram sabendo: "Bush declara vitória na guerra", conforme a manchete do clichê encerrado à 0h50 de quinta-feira. Os outros jornais decidiram esperar por Bush. "O Estado de S.Paulo traz anúncio da vitória na capa mas, nos exemplares que recebi, mantém o noticiário defasado nas páginas internas. Idem no "Jornal do Brasil". Dos quatro grandes jornais que vi, apenas "O Globo" deu na capa e nas páginas internas o noticiário completo da proclamação da vitória e do cessar-fogo. Os leitores do primeiro clichê da Folha também mereciam saber de tudo.

MEMÓRIA - A Folha informa(quarta-feira) que os médicos do Hospital de Base de Brasília que fizeram a primeira operação em Tancredo Neves serão julgados amanhã pelo Conselho Regional de Medicina. Reproduz informação dos médicos segundo a qual a primeira cirurgia "deslocou a alça do intestino de Tancredo que estava inflamada (divertículo de Meckel)". É uma vergonha (diria o Boris Casoy) que o jornal não rememore, bastava uma linha, que Tancredo foi operado de um timor benigno - conforme revelou a própria Folha num dos maiores furos jornalísticos que já deu em toda sua história.

TANCREDO - Está boa a reportagem (na quinta-feira) recuperando o caso dos médicos de Tancredo que serão julgados. É um grande assunto jornalístico e, se estivéssemos num país de Primeiro Mundo, a pressão da imprensa no sentido de se apurar realmente o acontecido seria infinitamente superior à que se vê aqui. Até a Folha está dando a notícia em pé de página. Apenas um detalhe no texto publicado hoje: ali se fala em "postura editorial" da Folha. O "Manual Geral da Redação" recomenda na página 94 que não se use a palavra "postura" como sinônimo de atitude, posição; postura é coisa física, posição do corpo.

PARCIALIDADE - O presidente dos EUA, vencedor, ganhou da Folha o direito de ter seu pequeno discurso de resposta a Sadam Hussein publicado na íntegra (quarta-feira) Sadam Husseim, derrotado, não teve o mesmo privilégio. A Folha não publica a íntegra do seu discurso. Pois ainda é tempo de recuperá-la. O "Globo" deu. É uma peça histórica e jornalística da maior importância. Merecia análise cuidados porque Sadam sugere que voltará - obviamente se continuar no poder - a brigar pelo Kuait. E termina assim: "Ó como é doce a vitória".

CONTINUIDADE - Desde domingo que as manchetes da Folha vêm mantendo cm frieza e objetividade uma sequência no desenrolar dos acontecimentos no Golfo Pérsico: "Prazo acaba; Bush mantém os ataques"; "EUA dizem já ter 5.500 prisioneiros"; "Sadam anuncia retirada do Kuait". Hoje (quarta) houve um breque nesta sequência porque a manchete "Bush exige rendição de Sadam" é tão importante quanto a notícia de que as tropas da coalização entraram na capital do Kuait. A rigor, a retomada do Kuait é anterior à exigência da rendição total e ela decorre da bem sucedida operação militar no Kuait. Historicamente, a retomada do Kuait merecia a manchete.

OPORTUNIDADE - As regras das aplicações financeiras estão mudando e a classe média brasileira que lê o jornal - ou mesmo aquela para quem sobrou algum dinheiro - não fala de outra coisa: é melhor aplicar na poupança? O fundão vai ser o que dizem? A Folha tem feito material a respeito disso - a capa do caderno Dinheiro de domingo passado estava muito boa - mas hoje (quarta-feira), exatamente no dia em que se publica a íntegra da regulamentação dos fundões, o jornal não dá a menor bola para isso (a não ser uma chamadinha confusa no índice, "BC autoriza manutenção de aplicações no open". Não basta dar bem um assunto, como se fez no domingo, e despejar uma íntegra em outro dia sem recapitulações, gráficos e tabelas, sem chamar na primeira página, sem insinuar para o leitor que olhe, que o seu jornal está ali, junto dele, preocupado com ele, mostrando o que deverá fazer, quando fazer e como fazer o melhor. Se os jornais continuarem ignorando o dia a dia dos seus leitores, suas preocupações mais básicas, vão morrer antes do que se imagina.

PRECONCEITO - Em texto (terça-feira) sobre os novos cargos da Assembleia Legislativa, a Folha dá show de preconceito. O presidente da Assembleia, Tonico Ramos, é descrito como "conhecido por gestos e gostos duvidosos". Os exemplos: "anda com botina" (porque é de origem interiorana); "fez dobradinha com Tinoco" (da dupla sertaneja); nos restaurantes gosta de pedir "um prato estranho: camarão flambado acompanhado de banana". O que tem de duvidoso em se usar botina? Música sertaneja é ruim? Comer camarão com banana é mais feio do que comer escargot com manga?

ESQUIZOFRENIA - Título na capa de Ilustrada de segunda-feira, na chamada ao alto da página sobre o festival de cinema de Berlim: "Resultado oficial sai amanhã". Título em seis colunas de fora a fora, na segunda página de terça: "Berlim anuncia hoje vencedores da quadragésima primeira mostra". Pela expectativa que está sendo criada pensei que, no mínimo, a Ilustrada fosse trazer umas oito páginas sobre o festival de Berlim. Nunca vi tanta anunciação de resultados em títulos...Pois bem, o resultado aparece na quarta-feira em texto de 11,5 cm e um pequeno quadro no pé da capa do caderno sob título de duas colunas. Se o festival nçao tinha importância, porque tanto escândalo na véspera e ante-véspera? Se era tão importante antes por que um tratamento tão descuidado no anúncio dos prêmios?

CÓLERA - Creio que a Folha optou acertadamente em grafar o nome da doença cólera como substantivo masculino. Antônio Callado (no "Jornal do Brasil" de sábado passado) e Otto Lara Resende (no "Globo" de domingo) defendem o uso da palavra cólera-doença no masculino, o cólera. Ambos explicam porque, Callado está baseado no "Formulário Chernovz", de 1905 e na tradição das línguas neolatinas. Otto Lara foi às suas fontes - alguns dicionários registram no feminino e outros, como o "Aurélio" aceitam as duas acepções - mas a maioria define como masculino. Ele cita inclusive a confusão que jornais e televisões estão fazendo com o gênero da palavra. Vejam, a propósito, na edição de domingo do "Estado" que a palavra foi grafada no feminino em artigo de Roberto Campos intitulado "Já chegou a cólera..." porque o "Estado" adota no feminino. Já no "Globo" o mesmo artigo de Campos virou "Já chegou o cólera..."

A IMAGEM DO MUNDO
Domingo, 17 de fevereiro, a Folha publicou esta foto do chanceler Francisco Rezek. Comentei na crítica interna que o mapa é uma maravilha de significados. Conforme ponto de vista atual, o mundo está representado de cabeça para baixo, algo insólito. Expliquei que se tratava de obra dos cartógrafos portugueses quando Portugal dominava os mares. Os mapas mostravam o mundo invertido. A rigor, não existe ponto de referência o universo para definir o que está embaixo ou em cima do globo terrestre. Os britânicos é que botaram o mapa na posição que se conhece hoje, a Inglaterra em cima e o "resto" embaixo. Ou seja, inverteram a representação vigente a partir da ideia de que estavam por cima, eram fortes e dominavam o planeta. A coisa pegou. A Folha gostou do comentário e o pessoal de Ciência produziu reportagem publicada na quarta-feira no caderno mundo onde se acrescenta que os árabes foram célebres, na antiguidade, pela produção de mapas. Só não gostei do título, que assume assertiva bastante discutível: "Árabes viraram o mundo de 'ponta cabeça'". O título, apesar das aspas, compra a convenção de que o Norte é sempre lá em cima. Nada contra esta representação do mundo. Só queria alertar para os seus significados. Não foi à toa que um filósofo alertou para o fato de que os modernos são os únicos que têm uma concepção de mundo. E, na época da imagem do mundo, nem tudo é o que parece.


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