Folha de S. Paulo


Por baixo dos capacetes digitais

Ilustração Antonio Prata de 17.dez.2017

Na semana passada o conto "Cat person", escrito pela até então desconhecida Kristen Roupenian, 36, foi não apenas a ficção mais lida na revista "New Yorker" em 2017 como um dos textos mais acessados em toda a revista, sobre qualquer assunto, num ano em que Trump, Kim Jong-un, terroristas e terremotos não pararam de sacudir o planeta. (Eu ia botar o link aqui, mas é mais fácil você jogar "Cat person" no Google do que digitar aquelas letras sem sentido de URL encurtada).

"Cat person" narra o flerte por mensagem de texto e o posterior encontro, ou melhor, desencontro sexual entre Margot, vendedora na bomboniere de um cinema descolado e Robert, um cliente mezzo charmoso, mezzo desengonçado, por quem ela se interessa. (Embora em terceira pessoa, a história é contada do ponto de vista da garota).

Nos últimos dias, hipóteses sobre o sucesso do conto foram levantadas pelo "New York Times", "Washington Post", "The Atlantic", "Guardian", Huffington Post, Vox.com, "The Economist", entre outras publicações, blogueiros e tuiteiros. É consenso que, para além do talento impressionante da autora –ninguém, até hoje, ficcionalizou tão bem os meandros envolvidos nas trocas de mensagens por celular–, a época ajudou. Neste momento em que, nos EUA, figurões do show business e da política estão revelando-se molestadores seriais, a descrição de uma trepada desastrosa, do ponto de vista da mulher, abre uma nova frente de discussão.

Margot não é estuprada, assediada ou diretamente coagida a fazer sexo. Ela vai pra cama com Robert porque quer. Ou melhor, por não conseguir falar que não quer, que perdeu a vontade na hora agá e ter medo de ser vista como travada, maluca ou simplesmente frustrar o parceiro (aqui vale um link: https://elladawson.com/ ). Os pensamentos da garota entre tentativas de encontrar algum tesão, de controlar o nojo, a vontade de rir ou de sair correndo são o ponto alto da história. Para mim, como homem, é fácil dizer, diante dos atos do Harvey Weinstein ou do Louis C.K., nossa, eu jamais faria isso. Entrando nos pensamentos de Margot, porém, impossível não me perguntar quando eu fui Robert.

O conto já seria excelente caso se restringisse ao desconforto sexual da protagonista, mas ele é mais do que isso. Tão bem narrada quanto a angústia de Margot é a de Robert, também perdido sobre os lençóis, atrapalhado entre o próprio desejo e a vontade de satisfazer a parceira, tentando reverter uma iminente brochada com falas patéticas de filme pornô.

O desencontro sexual fica ainda mais realçado porque contrasta com a perfeição do longo flerte via mensagens de texto, nos meses em que os dois construíram com a ironia mais fina as tiradas mais afiadas e os emojis mais bem encontrados impecáveis versões si mesmos.

O conto –como toda boa ficção, aliás– é uma boa metáfora da época. Parece que quanto mais caprichamos na performance digital, posamos para selfies, desenhamos milimetricamente nossos "profiles" sociais, menos sabemos lidar com as existências de carne e osso. Lembro, agora, da cena de "Guerra nas Estrelas" em que Darth Vader tira seu reluzente capacete negro (poderia ser um umidificador ou uma caixa de som da Apple, não?) e revela a cabeça deformada. O conto é isso: metade a construção do impecável capacete digital, metade o desnudamento da deprimente cachola derretida. Que a força esteja conosco.

Ps. Obrigado, Guga, por me indicar a leitura.


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