Folha de S. Paulo


Cuecas, Shiva, xará

Nos encontramos na praça e o saúdo com uma ponta de ironia, "E aí, Antonio?", ao que ele me responde, também com ironia, "Fala, Antonio!". A ironia –é como se uma das sílabas de "Antonio" piscasse o olho, de leve– nasce da constatação algo surpreendente, algo estúpida, de que temos o mesmo nome.

Não sei se com vocês é igual, mas quando encontro um xará e vou chamá-lo pelo seu nome, chamo-o pelo meu. Quero dizer, meu cérebro não tem dois arquivos, um "antonioeumesmo.doc" e outro "antoniomeuxarádobairro.doc". Ao pronunciar o nome dele, tenho consciência de que estou usando para um outro as letras gravadas mais profundamente na minha massa cinzenta. Acho que se me puserem num desses aparelhos de PET-scan, me pedirem para dizer primeiro meu nome e depois o do meu xará, os cientistas verão a mesmíssima área colorir-se. Com a diferença de que, na segunda vez, outra pequena rede neuronal irá brilhar um micronésimo de segundo depois, nos cafundós do sistema límbico: é a rede da surpresa, a meia dúzia de sinapses avisando, "ei, lobo frontal, o nome é o mesmo, mas a pessoa é diferente, prest'enção!"

Como explicar a surpresa? É tipo, tipo encontrar a pessoa na praça e imediatamente vesti-la com a minha cueca preferida, aquela que, ao ver na gaveta, pela manhã, me deixa feliz: oba, hoje é a boxer cinza, molinha! É esquisito vestir meu xará com a minha boxer cinza, molinha. Cuecas são peças de uso íntimo e intransferível. Em relatos de pobreza extrema costumamos ouvir que "eram tão pobres que o pai deixava de comer para alimentar o filho", mas jamais escutamos "eram tão pobres que o pai deixava de usar cueca para vestir o filho". Até a miséria tem a sua dignidade. Por que os nomes, não?

Adams Carvalho/Folhapress
Ilustração Antonio Prata de 10.dez.2017

Talvez seja uma questão de economia. Pra que meu cérebro vai guardar dois arquivos idênticos se pode usar o mesmo, poupando esforço? Bem, talvez porque ele gaste bastante energia no estranhamento, na meia dúzia de sinapses avisando, "ei, lobo frontal, o nome é o mesmo, mas a pessoa é diferente, prest'enção!"

Talvez não seja uma questão de economia, mas, digamos, de engenharia de tráfego. O "antonioeumesmo.doc" é um arquivo com milhões de terminações nervosas, é tipo uma estação Sé do metrô dentro da minha cabeça onde chegam trens e ônibus e carros e bicicletas e pedestres de todas as regiões da minha vida, do parto a cinco minutos atrás, quando minha mulher veio me pedir para comprar mandioquinha. Já "antoniomeuxarádobairro.doc" é um ponto de ônibus servido por uma única linha a cada três meses. Normal que ao dar o Google interno as primeiras 164.785.239 ocorrências sejam de mim.

Veja a pretensão deste cronista: em meia dúzia de parágrafos me tornei linguista, neurologista –e a modéstia impede de me gabar das profundas considerações acerca da sociologia do vestuário. Melhor deixar de ser besta e escrever pra um cientista, mandar um e-mail pro Sidarta Ribeiro, por exemplo, perguntando sobre esse lance dos xarás. "Sidarta", toda vez que penso nele, penso na capa amarela do livro do Hermann Hesse, penso num Buda sentado em flor de lótus, penso em Shiva com quatro braços e seu sorrisinho de Mona Lisa hindu. Não penso em cuecas. Bom, agora pensei. E vou pensar sempre, daqui em diante. Fascinantes são os mistérios do entendimento humano. Delícia é minha boxer cinza, molinha.


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