Folha de S. Paulo


Seca cultural

RIO DE JANEIRO - Era o menor sebo da cidade. Ao passar naquela rua menos movimentada do Flamengo corria-se o risco de ver despencar livros e mais livros, tão apinhado vivia o lugar. Mas quem entende da arte de buquinar garantia: ali se escondiam coisas raras e jamais se saía de mãos abanando. E, como sói acontecer hoje, o Sebo da Lúcia, de portas abertas havia 12 anos, um belo dia não estava mais lá.

Mais uma vítima, pensou o buquineiro, da seca cultural que o país enfrenta: livrarias fechando a rodo; festivais literários sendo cancelados ou com programações enxutas; patrocínios, bolsas, prêmios e concursos extintos; editoras segurando lançamentos; governo suspendendo compras ou não repassando verbas.

A Lúcia, no entanto, deu uma volta esperta na crise. Logo arranjou um novo espaço, que é pelo menos três vezes maior que o antigo, no qual pôde distribuir com mais critério seu acervo de cerca de quatro mil livros, LPs e CDs. Antes, pagava um aluguel de R$ 2.000; agora conseguiu um mais barato (de R$ 1.300), numa galeria de comércio popular no Catete de nome mais apropriado para seu negócio: Machado de Assis.

Com capricho, decorou a fachada da loja com capas de João Gilberto, Beatles, Ary Barroso, Jacob do Bandolim, Iron Maiden. Com orgulho, exibe os títulos sobre moda, arquitetura e história do Rio, e as coleções baratas de romances policiais, de espionagem ou ficção científica.

Em destaque, fica o vinil de 10 polegadas de Aracy de Almeida cantando Noel Rosa ("Feitiço da Vila", "Último Desejo", "Conversa de Botequim", entre outras), lançado em 1954 pela Continental, com desenho na capa de Di Cavalcanti e texto na contracapa de Fernando Lobo. Um luxo.

"Meu negócio vai bem, obrigada. Deve ser a crise", afirma Lúcia, instalada no novo endereço há quatro meses.


Endereço da página: