Folha de S. Paulo


Povo supérfluo

Um nasceu em 1973, na cidade marroquina de Salé. Dividia um cômodo com 11 pessoas, passou fome e perdeu a conta das vezes em que foi estuprado durante a infância. Hoje, é um dos principais escritores do mundo árabe.

O outro tem 33 anos e é palestino-libanês-iraquiano-alemão. Nasceu no Kuaite, viveu no Chipre e na Jordânia e estudou no Canadá. Trabalhou para organizaçMes humanitárias em zonas de conflito como Iêmen, Líbia e Argélia. Seu primeiro romance narra 24 horas na vida de um rapaz homossexual em um país árabe não identificado.

O primeiro se chama Abdellah Taïa e vive em Paris. O segundo, Saleem Haddad e vive em Londres. Eles e eu acabamos de publicar romances nos Estados Unidos, e, no último fim de semana, participamos juntos de um debate em Nova York no Pen World Voices, festival literário fundado por Salman Rushdie depois dos ataques do 11 de setembro e cujo foco é direitos humanos e liberdade de expressão.

Como nossos três romances apresentam personagens homo e transsexuais, a ideia dos organizadores era que discutíssemos o espaço ocupado pelas minorias sexuais nas sociedades do Oriente Médio e do Brasil.

Durante o debate, fiquei impressionado com o pessimismo que meus colegas árabes demonstraram. Era ingenuidade minha, porque a barra que Saleem, Abdellah e centenas de milhares de LGBT enfrentam no Oriente Médio é muito mais desencorajadora que a realidade no Brasil e países do Ocidente.

Os chamados "atos homossexuais" —ou "anti-naturais" ou coisa que o valha— são criminalizados em todo o Oriente Médio, à exceção de Israel. No mês passado, por exemplo, 11 homens foram presos no Egito e cumprirão penas de 3 a 12 anos de prisão. Na Arábia Saudita, no Iêmen e no Irã, a pena para os tais "atos" é execução.

Existem avanços, mas tudo é muito lento. Recentemente, o governo da Tunísia autorizou o registro da primeira organização LGBT em todo o Oriente Médio. A regra geral na região é que os LGBT não contam com qualquer tipo de proteção ou direito de igualdade.

No dia seguinte ao debate, fui ao cinema assistir ao documentário "Vita Activa: o espírito de Hannah Arendt", da diretora Ada Ushpiz, sobre uma das pensadoras mais influentes do século 20. Arendt, que era alemã e judia, cunhou o conceito da "banalização do mal" contra os judeus no Holocausto nazista.

No documentário, fica claro que, ao não conceder quaisquer direitos aos judeus, Hitler tornou-os irrelevantes para o processo político estatal. Um povo irrelevante torna-se supérfluo. E o supérfluo deve ser eliminado, sobretudo em tempos de crise.

Guardadas as proporções, o mesmo raciocínio é válido para a situação dos LGBT no países do Oriente Médio —ou para qualquer outra minoria em relação a uma estrutura estatal. A lógica é esta: quem não tem direitos não tem voz. Quem não tem voz não interessa e pode ser eliminado.

Saí do cinema entendendo melhor o pessimismo de meus colegas de debate; mas, também saí mais convicto da importância de que as minorias —sexuais ou de qualquer natureza— lutem para consolidar e ampliar seus direitos nas sociedades em que estejam.

Em algum momento do documentário, Hannah Arendt relaciona pluralidade e equilíbrio social. Aí me lembrei do Brasil.

No governo Dilma, o avanço dos direitos humanos das minorias —especialmente religiosas e sexuais— foi comprometido em negociações políticas com a bancada evangélica do Congresso e outros agentes. Não foi bom para o país.

É importante que o próximo governo não cometa o mesmo erro e tenha presente em sua política de direitos humanos a importância da proteção da pluralidade para o nosso equilíbrio social.


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