Folha de S. Paulo


Terra já teve atmosfera como a de Titã, diz estudo

Salvador Nogueira

Antes do oxigênio, havia o metano. Essa é, em essência, a mensagem de um novo trabalho realizado por cientistas americanos e britânicos, publicado online nesta segunda-feira (13) no periódico da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.

O estudo, que envolveu análises de amostras de rocha da bacia da Gricualândia Ocidental, na África do Sul, e modelos teóricos da atmosfera terrestre antiga, sugere que a Terra já teve, há bilhões de anos e ao menos por curtos períodos de tempo, uma atmosfera similar à de Titã, a maior das luas de Saturno, com uma densa névoa de hidrocarbonetos.

A hipótese, se confirmada, ajudará a explicar de que maneira a atmosfera terrestre deu um salto expressivo e rápido na quantidade de oxigênio há 2,4 bilhões de anos, no chamado Grande Evento de Oxigenação.

O trabalho, que tem como primeiro autor Gareth Izon, da Universidade de St. Andrews, na Escócia, e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos, se concentrou em investigar o padrão de distribuição de átomos de enxofre e de carbono orgânico ao longo de camadas sucessivas de rocha que remontam a até cerca de 2,8 bilhões de anos atrás.

Com base nessa análise, combinada a modelos atmosféricos, ficou claro que pelo menos um evento em que a atmosfera foi tomada por névoa de hidrocarbonetos aconteceu antes que o ar ganhasse quantidades apreciáveis de oxigênio.

A exemplo do que acontece em Titã, a névoa surge pela separação dos átomos nas moléculas de metano  o mais simples dos hidrocarbonetos  quando expostas à radiação ultravioleta solar. Experimentos em laboratório mostram como esse processo se dá. Mas existe uma diferença entre isso acontecer num recipiente fechado e na atmosfera.

No ar, sobretudo nas camadas mais altas, a destruição das moléculas também leva a grandes fugas de hidrogênio, o átomo mais leve que existe, para o espaço. O metano, CH4, é quebrado e o H escapa facilmente da gravidade do planeta, deixando apenas o carbono para trás.

Em Titã, esse processo é muito mais suave por conta da distância ao Sol, que resulta em nível de radiação menor e em energia contida nas moléculas e nos átomos, idem. Mas na Terra, sugerem os cientistas, essa perda de hidrogênio seria bastante relevante  e serviria como gatilho para o aumento posterior de oxigênio na atmosfera.

Altos níveis de metano significavam que mais hidrogênio, o principal gás impedindo o aumento do oxigênio, podia escapar para o espaço, abrindo caminho para a oxigenação global, disse Aubrey Zerkle, pesquisador da Universidade de St. Andrews e co-autor do estudo.

BIOLOGIA MOLDA O PLANETA
O curioso é que tanto o metano atmosférico quanto o posterior oxigênio atmosférico são produtos da vida na Terra. O primeiro é produzido pelos metanógenos  vida microbiana capaz de gerar o gás como subproduto de seu metabolismo  e o segundo pelas cianobactérias  vida microbiana capaz de fazer fotossíntese e converter CO2 em O2. (Em Titã, é importante ressaltar, o metano é muito provavelmente produto de reações não biológicas.)

A dinâmica entre esses dois tipos de criaturas, em conjunto com o ambiente na Terra, acabou determinando a composição da atmosfera  antes e depois do Grande Evento de Oxigenação. E a composição da atmosfera, por sua vez, tem grande papel em influenciar que tipos de formas de vida terão mais chance de proliferar. Basta dizer que os organismos multicelulares todos não estariam aqui não tivesse ocorrido esse processo de oxigenação da atmosfera.

Quanto à duração da fase enevoada da Terra, o atual trabalho é o primeiro a calcular quanto tempo um episódio desses pode ter durado  e é um tempo surpreendentemente rápido (pela escala geológica, claro). De acordo com os pesquisadores, a formação da névoa aconteceu num período de cerca de 300 mil anos e durou por pelo menos 1 milhão de anos, até se dissipar pela destruição do excesso de metano atmosférico.

Os pesquisadores não descartam a ocorrência de mais de um evento como esse ao longo do Arqueano  a segunda grande era da Terra, que ocorreu entre 3,8 bilhões de anos e 2,5 bilhões de anos. Com efeito, há evidências de trabalhos anteriores que indicam uma importante presença de metano na atmosfera durante o período, e os cientistas acreditam que alguns momentos de pico  levando à produção de névoas de hidrocarbonetos  estariam associados a episódios de maior disponibilidade de nutrientes  carbono orgânico e sulfatos  na antiga biosfera terrestre.

OLHO NOS EXOPLANETAS
A importância de compreender a atmosfera da Terra no passado torna-se maior conforme passamos a investigar a composição do ar de exoplanetas lá fora, como os do recém-anunciado sistema Trappist-1. É comum mencionarmos a ambição de detectar uma atmosfera rica em oxigênio, como a nossa atual, indicativa da presença de vida.

Contudo, é igualmente possível que encontremos atmosferas em outras circunstâncias, e não necessariamente indicativas de um planeta morto. Pelo contrário, elas podem meramente representar etapas diferentes da vida, como as que o nosso próprio planeta já vivenciou. Saber como as coisas aconteceram por aqui é fundamental se quisermos interpretar corretamente as histórias que as atmosferas exoplanetárias tentarão nos contar nos próximos anos.

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