Folha de S. Paulo


Teatro

Batalha nas coxias

A academia se ouriça para ampliar número de peças de Shakespeare

RESUMO Às vésperas da comemoração dos 450 anos do nascimento de William Shakespeare, pesquisadores publicam livro com peças em que autor de "Romeu e Julieta" teria colaborado. Os textos, que teriam sido escritos a várias mãos ou sofrido alterações posteriores pelo bardo, reacendem debate em torno de seu cânone.

NELSON DE SÁ

"SAI, PERSEGUIDO por um urso" é uma das rubricas mais conhecidas de William Shakespeare (1564-1616). A indicação de cena, que faz parte da peça "Conto de Inverno", expõe uma face menos difundida do teatro londrino de então, acentuadamente popular: o vínculo com espetáculos de animais. Ela reaparece noutra peça, aumentada e representada pela companhia teatral de Shakespeare na mesma época (c. 1610), "Mucedorus".

Esta foi considerada a comédia mais popular na cidade, na virada do século 16 para o 17. Entre as tragédias, a de maior apelo era "The Spanish Tragedy", a qual também foi ampliada, em 1602. Shakespeare não é o autor original de nenhuma das duas, mas teria escrito esses acréscimos --inclusive a rubrica do urso.

É o que propõe "William Shakespeare & Others - Collaborative Plays" [St. Martins Press, 782 págs., R$ 96,30, sob encomenda], que reúne dez peças e ensaios, de vários autores, sobre elas.

O livro, publicado no final do ano passado na Inglaterra, em associação com a Royal Shakespeare Company (RSC), reúne o trabalho de seis editores, liderados por Jonathan Bate, da Universidade de Oxford. Desde então, o volume vem motivando ondas de apoio e também controvérsia na comunidade acadêmica shakespeariana.

Um dos editores, Will Sharpe, da Universidade de Birmingham, assina no livro o ensaio "Authorship and Attribution" (autoria e atribuição), no qual detalha as técnicas usadas para identificar as peças colaborativas de Shakespeare. Sharpe diz que os chamados "estudos de atribuição" são o reverso de uma discussão ainda mais controversa, a da "questão autoral" --que não propõe colaboradores para o dramaturgo, e sim alternativas a ele.

Essa causa refluiu nos últimos anos, depois de inspirar até uma superprodução hollywoodiana, "Anônimo" (2011), dirigida por Roland Emmerich, que defendia outro autor para as peças, o conde de Oxford --e que foi um fracasso de bilheteria.

Agora, nos 450 anos de Shakespeare --a serem comemorados no próximo dia 23, data convencionada, embora não comprovada, de seu nascimento-- a aposta são "estudos de atribuição" como os coligidos em "Collaborative Plays".

Além do cânone de 38 peças, um quarto delas reconhecidamente escritas tendo o dramaturgo como colaborador, buscam-se novos textos que o teriam como coautor.

James Shapiro, professor da Universidade Columbia que publicou um livro influente rebatendo as tentativas de revogação de autoria, "Quem Escreveu Shakespeare?" [Nossa Cultura, 356 págs., R$ 59], recorda que por muito tempo os acadêmicos se mantiveram afastados do tema das coautorias shakespearianas.

Por exemplo, quando começou a dar aulas nos anos 1980, abordando peças como "Titus Andronicus" e "Timão de Atenas", ele não fazia ideia de que tinham sido escritas por Shakespeare com os colegas George Peele e Thomas Middleton, respectivamente. Agora, sabe-se que ele trabalhou com colaboradores tanto cedo na carreira ("Titus") como mais tarde ("Timão").

Para Shapiro, o novo livro é uma edição marcante e rica das peças, permitindo revisitar de uma maneira nova a pergunta "O que é shakespeariano?".

CÂNONE Nem todos veem assim. Gary Taylor, da Universidade Estadual da Flórida, foi um dos editores de "The Oxford Shakespeare" em 2005 (Oxford University Press), no qual se incluíram pela primeira vez, entre as obras completas, textos como "Sir Thomas More". Num artigo para o "Washington Post", há dois meses, ele acusou a equipe de "Collaborative Plays" de ir longe demais ao tentar acrescentar dez novas peças ao cânone.

Taylor elogia o ensaio "excelente" de Will Sharpe, que reconhece que quatro das peças reproduzidas provavelmente não são de Shakespeare. Mas questiona o editor principal, Bate, que, em seu ensaio no livro, justifica a inclusão das quatro peças por terem sido atribuídas ao dramaturgo na época. Para Taylor, a explicação é frágil, pois muitas outras peças foram publicadas como sendo de autoria de Shakespeare e mesmo assim não foram incluídas no volume.

Questionado, Sharpe responde que a equipe chegou a discutir, antes da publicação, se a expressão peças colaborativas poderia ser enganadora ("misleading"). "O título guarda-chuva ideal seria Shakespeare Apócrifo', porque é isso o que as dez peças têm em comum, mas é o nome do livro clássico de C.F. Tucker [Shakespeare Aprocrypha', 1908, que lista e analisa 42 textos] e então seria necessário editar toda peça já atribuída a Shakespeare, uma tarefa imensa."

Ele acrescenta que não se deve sobrevalorizar o título, porque, quando se começa a ler, fica evidente que o volume não atribui todas as peças a Shakespeare. "Nós não estamos fazendo reivindicações sensacionalistas e falsas sobre autoria", diz, contrariado, apesar dos elogios de Taylor a seu ensaio de 104 páginas.

Parte das críticas deve ser contextualizada pela corrida --agora escancarada-- para comprovar e estabelecer o que mais deve ser incluído no cânone. Outras edições de obras completas, inclusive "RSC Shakespeare: The Complete Works", editada pelo mesmo Bate em 2007, vêm acrescentando peças à lista. A popular e prestigiosa coleção Arden somou "Double Falsehood", originalmente "Cardenio", à sua lista em 2010.

Das dez peças de "Collaborative Plays", cinco são identificadas por Sharpe como "quase certamente ou muito provavelmente" escritas por Shakespeare, em colaboração com outros autores: "Sir Thomas More", "Edward III", "Arden of Faversham", "The Spanish Tragedy" e "Double Falsehood". "Mucedorus", a sexta, "vale a pena ser considerada". As demais seriam "muito improváveis ou quase impossíveis": "A Yorkshire Tragedy", "The London Prodigal", "Locrine" e "Thomas Lord Cromwell".

CORRIDA O esforço centenário de distinguir entre o Shakespeare canônico, aquele encontrado na primeira edição das peças logo depois sua morte (o "First Folio", com 36 obras), e o apócrifo, com textos deixados de fora, nunca se repetiu com outros autores elisabetanos, segundo Peter Kirwan, da Universidade de Nottingham, também coeditor do livro.

Teria sido uma forma de afastar o dramaturgo do "mundo bagunçado" daquele início da dramaturgia moderna, no qual peças atribuídas a nomes como Ben Jonson (1572-1637) têm sua autoria dissolvida em colaborações, revisões etc.

Nas últimas décadas, porém, progrediu muito a compreensão sobre autoria nos séculos 16 e 17, graças aos exames com apoio de computador. Cresceu também a aceitação de que, como em filmes e séries de televisão na Hollywood de hoje, naquele momento as peças eram escritas e reescritas por muitas mãos, em ritmo industrial.

E novas trilhas são abertas. Meses antes de "Collaborative Plays" chegar às livrarias, um professor da Universidade do Texas, Douglas Bruster, publicou ensaio afirmando que 325 versos acrescentados a "The Spanish Tragedy" para uma encenação pela companhia de Shakespeare têm características que derivam de dificuldades de leitura, por parte dos tipógrafos, dos manuscritos do dramaturgo (revista quadrimestral "Notes & Queries", Oxford, agosto de 2013).

A peça é quase unanimemente atribuída a Thomas Kyd (1558-94), mas aquelas centenas de linhas seriam colaborações shakespearianas. Agora Bruster pretende editar sua própria versão das obras completas, prevista para 2016 e intitulada "Bankside Shakespeare", já com as passagens adicionais.

Ele não está sozinho na corrida editorial. Maior referência contemporânea no desenvolvimento de mecanismos de atribuição de autoria, MacDonald P. Jackson, da Universidade de Auckland, da Nova Zelândia, lança daqui a três meses uma edição de "Arden of Faversham" que vai propor expressamente acrescentar a peça ao cânone shakesperiano, a partir de juízo formado com técnicas estilométricas e testes quantitativos.

A equipe de editores de "Collaborative Plays" não esconde ter se baseado, em parte, nos perfis de dramaturgos elisabetanos desenvolvidos por Jackson nos anos 1970 e lista as seis "marcas estilísticas" centrais adotadas para indicar colaboração nas peças analisadas: contrações preferidas (como "I'll" em vez de "I will"), formas verbais (como "hath" em vez de "has"), métrica, palavrões, preposições e pronomes.

Jackson e seus colegas trabalhavam de início manualmente, mas dos anos 1990 para cá, sublinha o livro, "esse trabalho hercúleo se tornou relativamente fácil", com os textos do período elisabetano sendo absorvidos por bases de dados computadorizadas, munidas de funções de busca sofisticadas, que podem ser feitas em segundos, quando antes tomavam anos, "talvez décadas".

Daí a concorrência crescente pela revisão do cânone shakespeariano, agora potencializada pela proximidade das efemérides --além dos 450 anos de natalício, aproximam-se os 400 anos de morte, a serem lembrados em 2016.

TRÊS PEÇAS Apanhado no redemoinho acadêmico e editorial, Will Sharpe diz que o objetivo central do novo livro é apenas trazer para a boca de cena e para o público, um debate sobre as contribuições de Shakespeare que já acontecia em publicações universitárias e em bibliotecas. Não se deve procurar na obra uma grande revelação, embora a imprensa londrina tenha feito exatamente isso.

O "Observer", por exemplo, publicou em outubro uma reportagem intitulada "Shakespeare's fingerprints found on three Elizabethan plays" (digitais de Shakespeare são encontradas em três peças elisabetanas). O texto referia-se a "The Spanish Tragedy", "Arden of Faversham" e "Mucedorus".

Com relutância, Sharpe admite que talvez a maior revelação potencial seja mesmo "The Spanish Tragedy", por ser um clássico da Renascença inglesa, a primeira grande tragédia popular do palco elisabetano, enfim, "a melhor peça" dentre as dez editadas agora. Um texto que, firma o editor, merece ser mais representado do que é --o que certamente acontecerá se forem estabelecidos os adendos shakespearianos.

Argumento semelhante vale para "Arden", uma tragédia doméstica muito à frente de seu tempo, sobre uma cidade inglesa comum, sobre pessoas comuns e um assassinato, "uma grande peça para remontar". Não por coincidência, a mesma RSC que coedita o livro prepara uma produção da obra para o final deste mês, em Stratford-upon-Avon, cidade natal de Shakespeare (veja destaques da programação de comemoração dos 450 anos ao lado).

"Mucedorus" seria um caso diferente, até porque "precisa de mais investigação". Muito do estudo sobre atribuição no livro é dedicado a ela, que foi a peça mais publicada no período, anonimamente, com 17 edições entre 1598 e 1668. Há "provas linguísticas instigantes" que sugerem que Shakespeare se envolveu nos trechos adicionais, acrescentados quando sua companhia encenou o texto e ele era o dramaturgo-chefe.

Também os temas são similares àqueles das peças que escreveu então, como "Conto de Inverno" e "Cymbeline", mas Sharpe prefere esperar, em vez de ser assertivo, justificando que há um livro programado para sair em 2016, escrito por MacDonald Jackson, sua principal referência. "Aguardamos esse estudo com grande interesse."

O original de "Mucedorus" é usualmente atribuído aos chamados "university wits", dramaturgos com formação em Oxford ou Cambridge. Robert Greene e Thomas Lodge --este um escritor que curiosamente viveu alguns meses em Santos, no colégio jesuíta, em 1591/92-- são as apostas mais citadas por acadêmicos, mas não há prova que ampare uma autoria.

SANTO GRAAL Por mais convincentes que sejam os levantamentos de estilometria e outros utilizados em "Collaborative Plays", como um novo software para localização de autoplágios, o resultado obtido por meio deles é só um aumento na probabilidade de determinada autoria, não uma prova definitiva, física. A exceção é "Sir Thomas More", peça que sobreviveu apenas como manuscrito, com várias caligrafias, sem ter sido editada ou sequer encenada na época em que foi escrita.

Uma cena escrita na letra apelidada de "hand d", caligrafia d, vem sendo examinada desde o final do século 19 como possível Santo Graal dos "estudos de atribuição". Sir Edward Thompson, primeiro diretor do Museu Britânico e importante paleógrafo, especialista em escritas antigas, proclamava já em 1916 que era, sim, da pena de Shakespeare.

Os estudos acumulados desde então permitem afirmar hoje, segundo Sharpe, que há quatro características ortográficas das seis assinaturas conhecidas de Shakespeare que são totalmente únicas, não localizadas em qualquer outro documento, exceto pela passagem da caligrafia d, em que são encontradas todas as quatro.

São elas: um "a" com esporas, uma forma única de "w", um floreio estranho no "k" e traços superiores também únicos no "m" e no "w" de uma das seis assinaturas.

As formas das letras são "muito, muito idiossincráticas", diz Sharpe. Combinadas com as provas de ortografia, de contração e colocação de palavras, de repetição de imagens, entre outras, construíram uma causa mais forte para "Sir Thomas More" do que para as outras.

No manuscrito guardado hoje na Biblioteca Britânica, a peça é um volume disforme, com vários pedaços de papel colados, conformando uma ordem aparente. Com abundantes revisões, inserções e cortes, "é um dos mais fascinantes exemplos de um documento teatral em elaboração", segundo descrição em "Collaborative Plays".

No enredo, uma passagem creditada a Shakespeare mostra como o humanista Thomas More (1478-1535) contém uma revolta de artesãos e aprendizes em Londres, contra imigrantes. Ele questiona se, forçados a viver na França ou em Portugal: "Vos agradaria nação tão primitiva, que irrompesse com uma violência hedionda [...] ou vos chutasse como cães? [...] Eis vossa desumanidade horrenda" (leia a tradução de Alípio Correia de Franca Neto à pág. 8).

NO PALCO Numa resenha elogiosa a "Collaborative Plays", a revista "Around the Globe" (Shakespeare's Globe, primavera de 2014) afirma que a coletânea permite vislumbrar um mundo em que a autoria era comunal e complexa, avançando assim na compreensão de que Shakespeare foi de fato "um homem de teatro".

As últimas 36 páginas do livro são dedicadas a depoimentos de encenadores e atores que trabalharam com as peças. Terry Hands, que foi diretor-artístico da própria RSC e montou "Arden of Faversham", afirma não ver qualquer sinal do dramaturgo no texto.

Mas acrescenta que uma das cenas, com a destruição de um missal, um livro de orações para missa, "é mais audaciosa até"do que a queima do Corão em "Tamburlaine", de autoria de Christopher Marlowe (1564-93). Ele pergunta por que não se pode "celebrar uma peça marcante de um autor que não tenha escrito mais nada". Em outras palavras: Por que uma boa peça, como "Arden", precisa da assinatura de Shakespeare?

O diretor brasileiro Ron Daniels concorda. "Pois é, a indústria shakespeariana não para. Cada um de nós procura ganhar a vida, publicando livros, desenvolvendo teorias e montando peças. Para mim, só o que importa é descobrir uma maneira de encenar essas peças para que tragam sentido às nossas vidas. Que importa quem as escreveu? Que diferença faz?"

Questionado, ele responde que talvez seja oportunismo procurar novas peças nos 450 anos do dramaturgo, mas acrescenta que "tudo bem: quanto mais Shakespeare, melhor". Quanto à autoria colaborativa, insiste que é só curiosidade acadêmica. "Para o ator, para o diretor, o que importa é a vida que as peças têm no palco."

Daniels foi colega de Hands na RSC e assistiu à sua montagem, no início dos anos 1980. "Se bem me lembro, Arden' é um melodrama doméstico muito gostoso."


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