Folha de S. Paulo


Programa 'caça' talentos e leva alunos até de pior escola pública à Unicamp

Gabriel Cabral/Folhapress
Campinas, SP, Brasil, 23-08-2017: Marcos Vaz, estudante do programa ProFIS. (Programa de Formação Interdisciplinar Superior) da UNICAMP. (foto Gabriel Cabral/Folhapress)
Marcos Vaz Barbosa, 19, estudante do programa Profis (Programa de Formação Interdisciplinar Superior)

O pai de Iracy da Rocha Vaz, 52, ajudou a construir a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). "Quando a gente passava na frente, ele dizia: 'Está vendo esses tijolos? Eu que coloquei'."

O pai era pedreiro. Iracy, que cursou até a 7ª série, não sabia nem o que era Unicamp. Achava que era um hospital. Hoje, seu filho não só estuda na universidade como está prestes a entrar no curso mais concorrido, o de medicina.

Marcos Vaz Barbosa, 19, o filho, é um dos alunos do Profis (Programa de Formação Interdisciplinar Superior), iniciativa de ação afirmativa inédita no país.

Criado em 2011, o programa já tem estudantes até na pós-graduação da universidade. Desde o início, recebeu jovens tanto das melhores escolas públicas de Campinas –como aquela em que Marcos estudou– como das piores.

Uma vez selecionados, os jovens passam dois anos na Unicamp em um curso de formação geral de horário integral, com matérias de áreas diversas, como física, geometria analítica e literatura, e podem fazer iniciação científica.

Recebem auxílio financeiro e, ao fim do período, têm lugar garantido em uma graduação da universidade, sem vestibular –todos os cursos criaram vagas adicionais para receber egressos do Profis.

Os resultados do programa, que a Unicamp propõe ampliar, abrem espaço para discussões sobre caminhos e dilemas do ensino superior: das desigualdades de acesso às possibilidades de novos currículos.

SELEÇÃO

Uma das principais inovações do Profis é a seleção. O programa oferece vagas para o melhor aluno de cada escola pública de Campinas, pela nota no Enem, em um total de 120 vagas. Se houver vagas em aberto, os colégios podem mandar dois estudantes.

A fórmula foi desenvolvida após uma radiografia no perfil dos ingressantes na Unicamp em 2008 e 2009. Descobriu-se que mais da metade das escolas públicas da cidade não havia matriculado nenhum aluno lá; 20%, só um.

Outra simulação mostrou que, se o critério fosse só a nota do Enem, metade dos alunos do programa viria de quatro escolas públicas.

O resultado do desenho implantado, conta o professor Flávio César de Sá, foi visível no primeiro dia do programa.

Nos cinco anos anteriores, o curso de medicina da Unicamp, do qual ele também é professor, havia recebido só dois alunos autodeclarados pretos, de um total de 550. Os pardos somavam 34 (6%). Quando entrou na sala do Profis, Sá viu a diferença. "Mais da metade dos estudantes não era branca", lembra.

"Como a segregação tem caráter geográfico, ao se distribuir as vagas por todas as escolas, chega-se a uma composição mais próxima da realidade", explica Ana Maria Carneiro da Silva. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas, ela acompanha os alunos do Profis desde o início. Os resultados mostram conquistas e dificuldades.

Na primeira parte da lista, está o fato de o curso atrair pessoas que dificilmente iriam à Unicamp e talvez nem se inscreveriam. Mostra disso é que quase todos os alunos do Profis cursaram o ensino fundamental na rede pública, realidade de só um terço dos estudantes da universidade.

Outro ponto elencado como positivo é a possibilidade de o jovem escolher com mais consciência a sua graduação, uma vez que, ao longo de dois anos, já teve contato com diferentes áreas.

Não por acaso, o reitor Marcelo Knobel, idealizador do Profis, quer um debate sobre o currículo de todos os cursos da Unicamp, com formação mais ampla e interdisciplinar, como já ocorre no programa.

Por outro lado, o Profis também tem desafios. Da turma de 2014, 60% concluíram o curso e hoje estão em uma graduação da Unicamp. Mas 35% abandonaram tanto o programa como a universidade.

Segundo Ana Maria, parte deles foi estudar em outras instituições. Ainda assim, 50% dos evadidos entrevistados em 2014 citaram como motivo "dificuldade em acompanhar o programa".

A explicação dá a medida do desafio da inclusão nas universidades: no Profis, entre o melhor aluno de uma escola e o melhor de outra, chega a existir uma diferença de mais de 200 pontos no Enem.

Um estudo mostra que há alunos com notas iniciais ruins que depois ficam acima da média. Em regra, porém, os que concluem o curso em melhor posição são os que chegam melhor preparados.

O motivo é a desigualdade entre as escolas públicas, diz Mauricio Érnica, professor da Faculdade de Educação da Unicamp. Pesquisa recente da Fundação Lemann, por exemplo, mostra que colégios com estudantes mais pobres têm mais rotatividade de professores e diretores menos experientes. Nesse cenário, diz Érnica, "bons alunos são pessoas improváveis".

Outro problema é que mesmo os melhores não escapam do ensino básico falho. "A universidade é o lugar em que bons alunos se veem pela primeira vez como maus alunos".

Formada pela primeira turma do Profis, Raryane Valeria da Silva conta que chegou a ficar na escola mais de mês só com professor substituto de matemática. Jaqueline Queiroz diz que as faltas de professores eram muito comuns, principalmente em exatas. "No começo [do Profis] foi muito difícil", lembra.

DEDICAÇÃO

Depois, ela não só se acostumou como hoje está no mestrado. A garra e a dedicação dos estudantes os tornam mais preparados, dizem professores. "São jovens muito focados, que estão mudando a cara da Unicamp", diz Mariana Nery, docente da biologia.

Um de seus alunos é Marcos Vaz Barbosa, o filho da dona de casa Iracy. Para ir à Unicamp, ele acorda às 5h30 da manhã, pega uma hora de ônibus e faz as três refeições na universidade. Além das aulas do Profis, faz ali natação, coral e curso de ópera.

Quando chega em casa, à noite, é hora de estudar. Tem vezes que vai até as 2h. "Mal sai do quarto, nem no fim de semana. Tenho amigo que de repente vê ele na sala e pergunta: quem é?", diz a mãe.

Tanto esforço deve ser recompensado. Marcos está em primeiro lugar no programa, perto da vaga na medicina, e tem sobrinhos e primos interessados em seguir os estudos. "Na minha família, o Profis quebra uma história e gera um efeito dominó", afirma.

MAIS CIDADES

A Unicamp planeja expandir o Profis nos próximos anos para atender alunos de escola pública de outras cidades.

A medida consta de proposta divulgada na quinta-feira (31) pelo grupo de trabalho interno responsável por repensar as formas de ingresso na universidade.

Além de definir cotas e a seleção de parte das vagas pelo Enem, o documento sugere que o Profis oferte vagas para os municípios de Limeira e Piracicaba, onde há campi da universidade, e para a região metropolitana de Campinas.

A ampliação também é defendida pelo reitor Marcelo Knobel, mas ainda depende de recursos financeiros.

Com receita em queda, a universidade deve terminar o ano com um deficit de mais de R$ 200 milhões.

ARTESANAL

A questão financeira é um dos maiores obstáculos para dar uma escala maior ao Profis, uma vez que o programa utiliza uma ampla estrutura da universidade e requer verbas de auxílios para os estudantes poderem estudar em um curso de horário integral ao invés de trabalhar.

Em outras palavras, o Profis é uma ação praticamente "artesanal", como define o professor Mauricio Érnica. "Em termos meramente numéricos, uma política de cota ou bônus tende a beneficiar mais gente com uma canetada", afirma.

Por outro lado, ele lembra que, justamente por causa da questão da desigualdade entre as escolas, cotas podem não alcançar os mesmos alunos do Profis, especialmente aqueles que vêm de escolas mais precárias, se o único critério for a nota.

Numa tentativa de lidar com o problema dessa desigualdade, a Unicamp propôs na semana passada aumentar a pontuação no vestibular de quem fez o ensino fundamental na rede pública –diferenciando esses alunos daqueles que, por exemplo, formaram-se na rede privada e, no ensino médio, mudaram para um bom colégio técnico público.

Apesar da questão de escala, Érnica diz considerar o Profis um programa bem-sucedido, que traz novas ideias à universidade, especialmente ao possibilitar o aprendizado da "cultura acadêmica": como funciona a universidade, como usar bases de consulta bibliográfica, como fazer um fichamento etc.

"Tem muita coisa que a universidade pressupõe [que o aluno saiba], mas ela não ensina didaticamente", diz.

INSPIRAÇÃO

O Profis já foi citado como inspiração de outro projeto, que não vingou. Trata-se do Pimesp (Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Paulista), anunciado em 2012 pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB). A ação tinha como meta ter 50% de alunos de escola pública na USP, Unesp e Unicamp.

A proposta previa um curso intermediário de dois anos para entre o ensino médio e a graduação. Diferente do que ocorre no Profis, parte das aulas seria ministrada à distância. Esse foi um dos principais motivos de crítica à proposta, que acabou rechaçada pelos conselhos das universidades.

Por caminhos diferentes, porém, o cenário mudou desde então nas três instituições, embora só a Unicamp tenha alcançado a meta.

A proporção de alunos que fizeram todo o ensino médio em escola pública passou, entre 2011 e 2016 (dados mais recentes), de 26% para 31% dos ingressantes na USP, e de 37% para 45% na Unesp. Na Unicamp, que tem dados mais atuais, foi de 32%, em 2011, para 50% em 2017.

Além de ações afirmativas, o resultado reflete também um maior interesse dos alunos de escola pública pelo ensino superior –possivelmente motivados também pela maior oferta de vagas.

Quando Jaqueline Queiroz, 25, inscreveu-se no Profis no primeiro ano do programa, foi uma exceção em sua escola. "A maioria dos meus colegas não tinha feito o Enem. Em regra, não havia preocupação com vestibular."

Ela avalia que hoje isso mudou, opinião compartilhada por Gabriel Alexandre, 23. "A aspiração de muitos era mais trabalhar e constituir família", diz. Em 2010, só ele e 18 colegas de sua escola, na periferia, fizeram Enem. Em 2015 (dados mais recentes), o colégio teve 82 inscritos na prova.

BARREIRAS

O fato de ele ter sido um aluno excepcional em sua turma não impediu que tivesse dificuldades ao entrar na medicina da Unicamp, mesmo após dois anos de Profis.

Ele diz ter sentido falta, no início, de conhecimentos básicos em química, por exemplo, que os professores pressupunham que tivesse aprendido na escola ou no cursinho.

As dificuldades mexeram com a autoestima e, para superá-las, ele diz que teve de refletir também sobre isso. "A gente tem que se valorizar, senão a gente condiciona nosso rendimento cognitivo a isso [a autodepreciação]."

Para compensar, ele estudou muito e contou com uma rede. Os pais incentivaram, e o avô emprestou o Fusca, com o qual economizou uma hora por dia no trajeto casa-universidade –de ônibus, levava três horas para ir e voltar.

"Eles [os alunos da escola particular] têm uma base melhor, mas a gente consegue romper barreiras", diz.

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Resultados do Profis

Programa matricula alunos de todas as escolas públicas de Campinas na Unicamp

O que é o Profis
Programa da Unicamp que oferece curso de formação geral a alunos de escola pública

Escolha dos alunos
São selecionados um ou dois estudantes de cada colégio de colégio de Campinas, pela nota do Enem

Ensino superior
Após 2 a 3 anos, alunos aprovados vão para vagas reservadas em cursos de graduação da universidade

VESTIBULAR X PROFIS - Cor dos alunos (2016)


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