Folha de S. Paulo


Doria surreal: publicidade gigante para combater poluição visual

O fascínio invertido da administração de João Doria com a Lei Cidade Limpa beira realmente a obsessão. O prefeito foi eleito com grande votação, em primeiro turno, e uma plataforma ousada de realizações que não incluía o retrocesso nas regras de combate à poluição visual. Mas embora nem bem tenha começado a cumprir a lista de promessas, a cada semana surge de algum lugar de sua administração uma ameaça à Cidade Limpa. Só pode ser algum trauma psicológico.

A mais recente foi tema de reportagem na Folha de domingo (3) e beira a esquizofrenia: liberar placas gigantescas de publicidade, cobrar taxas "de 5% a 10%" e com a arrecadação criar um fundo para financiar "programas de reordenamento da paisagem urbana".

É mais ou menos como liberar os camelôs para criar um fundo de financiamento a "programas de reordenamento do comércio legal".

E o pior, a proposta partiu de Luis Eduardo Brettas, o funcionário nomeado pela administração Doria para comandar a CPPU, comissão incumbida de manter a Lei Cidade Limpa. Quem deveria operar como a Madre Superiora de um convento, propõe a ideia pornográfica.

Com projetos tão argutos como esse em sua administração, não precisamos de furacões Harvey, de mísseis coreanos e qualquer tragédia dessas que assolam outros países. Com um time de Brettas dá para destruir São Paulo em um ano, o Brasil em quatro e o mundo em uns poucos mais...

Logo alguém vai propor uma taxa dos buracos nas ruas para custear um plano de pavimentação; deixar os donos de imóvel destruírem as calçadas, cobrar taxas e pagar programas de planejamento da melhoria dos passeios... Chegaremos logo ao surrealismo administrativo total.

Proponho uma trégua: assim que acabar de realizar todos os itens do programa de governo com o qual foi eleito, Doria submete à população a lista de maldades de sua equipe contra a Cidade Limpa. Poderemos votar entre engavetá-la e mantê-la. Até lá, os assessores param de disparar flechas contra a lei, cumprem as regras em vigor e exigem que suas equipes fiscalizem a obediência.

A lei Cidade Limpa tem apenas dez anos. A luta contra a poluição visual dura desde o final da ditadura, nos anos 1980. Todas as fórmulas aparentemente "criativas" que os assessores de Doria pensarem já fracassaram desde que o prefeito Mario Covas (1983-86) começou a longa novela. João Doria Jr. era presidente da Paulistur, devia contar aos mais jovens como Covas foi derrotado pela publicidade irregular, que só cresceu, como as taxas não chegam aos cofres públicos (só servem para iludir a opinião pública na hora dos anúncios de medidas), exatamente porque ilegalidades vicejam quando cresce a poluição.

Depois vieram Janio, Erundina, Marta e Serra (pulo Maluf e Pitta porque eles potencializaram o descalabro). A todos, os eleitores pediram que combatessem a sujeira visual, todos tentaram fórmulas de acordo ou repressão, de conciliação, de uso de tecnologias de ponta, de taxas para fomentar o controle, de publicidade para financiar jardins e praças... Todos fracassaram. A poluição e a ilegalidade só cresceram. A fórmula proposta pelo prefeito Kassab, aprovada por vereadores de todos os partidos, é tão radical quanto simples ao proibir toda publicidade exterior.

Foi acabar a gestão Kassab para começarem as propostas de "pequenas exceções" e "aperfeiçoamentos". Inúmeros grupos de pressão querem ter direito a publicidade. Não há como e por que atender um e não o outro. Quando a ideia de Bretas ganhar força, as bancas de jornal pedirão sua parte, os pontos de táxi, os ônibus, os templos, as praças da periferia, os movimentos sociais, as organizações culturais. Todos têm discursos racionais. E todos querem pôr um pequeno prego no caixão da Lei Cidade Limpa.

É impossível que o prefeito não perceba o efeito deletério dos sucessivos sinais que sua administração tem dado contra a Lei Cidade Limpa: Doria fala em alterar a lei; o prefeito de Pinheiros espalha placas irregulares na Marginal; um evento patrocinado pela empresa Nike apresenta um totem irregular; a prefeitura espalha placas irregulares na 23 de Maio; funcionários de diversas prefeituras regionais cobram propina para liberar placas irregulares; agora o chefe da CPPU propõe a criação de uma exceção gigantesca...

Quem não aprende com a história repete seus erros no futuro. Se Brettas não sabe disso, não deveria sentar na cadeira que ocupa: ali, ingênuos são devorados. O mesmo vale para toda a equipe do prefeito.

Enquanto Doria não der um sinal claro de respeito à lei feita há apenas dez anos, com grande apoio da população, membros de seu time vão continuar se enredando em erros, provocações, balões de ensaio ou vendas descaradas de ilegalidades, como mostrou a recente série de reportagens da rádio CBN. Serão sucessivos desgastes, desnecessários para uma administração com tantas expectativas positivas.

O prefeito foi eleito com um programa de avanços. Deve mostrar a seu time que o objetivo está à frente, o retrovisor serve para aprender com erros do passado, não para copiá-los.


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