Folha de S. Paulo


Minha experiência com a psicanálise é parecida com a do horóscopo

Angelo Abu/Editoria de Arte/Folhapress

O papa Francisco fez terapia 40 anos atrás. Espero que a experiência tenha sido melhor do que a minha. Falo de resultados, não do processo em si: desde Sócrates que o diálogo é a melhor forma de procurar conhecimento. Não apenas o conhecimento do mundo, mas do nosso lugar dentro dele.

O meu problema eram as "narrativas". Tentei vários especialistas. Todos eles pretendiam resumir uma vida –no caso, a minha– a uma história coerente, lógica, fechada, como se fossem romancistas de mim próprio.

O fenômeno sempre me intrigou, sobretudo quando diferentes terapeutas escreviam diferentes histórias sobre o mesmo personagem. Mal comparada, ou talvez bem comparada, a minha experiência com a psicanálise é muito parecida com a leitura do horóscopo.

Quando leio as previsões para o meu signo em várias revistas, sou capaz de encontrar a saúde e a doença, a riqueza e a ruína, o amor e a traição –tudo na mesma semana. Onde está a verdade? Talvez em lugar nenhum, pensei, antes de abandonar o divã.

Felizmente, há almas gêmeas que nos compreendem. Galen Strawson, um filósofo analítico da Universidade do Texas, escreveu um ensaio brilhante ("The Unstoried Life") que encerra a coletânea "On Life-Writing" (organizada por Zachary Leader).

Strawson vai direto ao ponto: existem "narrativistas" e "não narrativistas". Os primeiros, como o nome indica, acreditam que a existência –pessoal ou de terceiros– pode ser estruturada como um escritor estrutura um romance.

Existe um "era uma vez..." nos princípios da infância e depois uma moral da história quando chegamos ao presente. Eu sou como sou no último capítulo porque existiu um primeiro, e depois um segundo, e depois um terceiro...

Essa pretensão, bastante comum, tem dois problemas sérios.

O primeiro é estritamente científico e qualquer neurocientista é capaz de o explicar: as nossas memórias não são apenas falíveis –uma sombra pálida do que realmente aconteceu. Muitas delas são falsas, ou fantasiosas, apesar de iluminadas por uma aparência de veracidade.

Um escritor fabrica memórias, emoções ou diálogos. O nosso cérebro também, com a óbvia exceção de que nós, seres humanos, nem sempre temos consciência desse fato.

O segundo problema é mais grave ainda: se a nossa "identidade" depende da nossa "narrativa", é importante questionar que tipo de narrativa contamos de nós próprios. Como afirma Strawson, nós não somos apenas contadores de histórias; nós nos transformamos nessa história. E quantas vidas não ficam prisioneiras de uma história falsa, às vezes impiedosa, só porque acreditamos nela?

Os "não narrativistas" recusam a narrativa. Galen Strawson, que se assume como um, confessa que a experiência que tem da vida é distinta: uma sucessão de momentos sem ordem ou sentido que aconteceram como aconteceram. Os sucessos, os fracassos –nada obedece a um padrão, nada oferece uma moral.

Concordo com Strawson. Quando olho para trás, também vejo esses momentos díspares, aleatórios, tantas vezes inexplicáveis, partindo do pressuposto, altamente duvidoso, de que consigo realmente vê-los. Reconheço a pessoa que sou hoje em alguns deles; noutros, é como se um parente lá tivesse estado –um heterônimo, ou um semi-heterônimo, em homenagem a Fernando Pessoa.

E, sobre questões de moral, sou capaz de apresentar várias sentenças sobre quem fui ou sou –versões incompatíveis, contraditórias, incomensuráveis.

Sou um merda e um homem decente. Sou infeliz e moderadamente feliz. Sou um destroço e um caso de resiliência. Não sou nada disso e sou tudo isso.

Fui demasiado injusto com os meus terapeutas. Nada tenho contra eles. Pelo contrário: a verdadeira terapia começou quando a falsa terapia acabou. Eles me mostraram que a minha história tinha várias histórias. Ou, melhor ainda, que a minha história não tem qualquer história.

Esse, aliás, é o único conselho que dou a quem deseja fazer análise: ter dois, três ou até quatro terapeutas ao mesmo tempo. Que o mesmo é dizer: contemplar duas, três ou até quatro narrativas diferentes sobre quem somos e o que valemos.

Com sorte, o leitor angustiado chegará à conclusão salvífica de que não existem conclusões.


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