Folha de S. Paulo


Regada a luxo, nova rota ferroviária no Peru passa por Cusco e Arequipa

Christian Jara/Divulgação
Belmond Andean Explorer, primeiro trem de luxo com cabine no país, em Puno
Belmond Andean Explorer, primeiro trem de luxo com cabine no país, em Puno

Saímos do hotel em Cusco às 10h da manhã e em 20 minutos estamos na estação. O trem é azul, a paisagem é ocre e na plataforma há um grupo de música andina, com dançarinos vestidos a caráter.

Somos convidados a subir no penúltimo vagão, que é um bar cheio de janelas, sofás e poltronas de couro confortáveis. Depois dele há apenas um vagão-observatório, joia do comboio, varanda flutuante com grade de ferro rendilhada –na qual, mais tarde e ao longo de todo o trajeto, nos debruçamos para ver a paisagem.

Ganhamos uma taça de espumante, e Christopher, o gerente, faz um brinde de boas-vindas. Conta que o trem está em funcionamento desde maio de 2017 e pertence ao grupo inglês Belmond, mas os vagões foram trazidos da Austrália, de navio.

Um tranco leve –e a periferia de Cusco, tão desolada quanto qualquer periferia latino-americana, vai ficando para trás. Um garçom leva os passageiros, um a um, para suas cabines. A caminhada é longa. É preciso passar por dois vagões-restaurantes, um vagão-boutique, outro vagão-bar (este com piano), um vagão-cozinha.

Ao todo são 16 vagões, a tripulação gira em torno de 30 funcionários, entre eles quatro seguranças, cinco engenheiros, um guia turístico e uma enfermeira. O número máximo de passageiros é 48; desta vez, havia 32.

Na cabine: cama de casal, duas poltronas, mesa, armário, banheiro. Janela para a estrada e janela para o corredor estreito. Decoração caprichada. Doces frescos numa bandeja.

Voltemos ao bar.

No vagão-observatório há um casal com moletons onde se lê "MIAMI" idênticos tirando selfies com as montanhas ao fundo; um jovem entediado porque no trem não há wi-fi (haverá em breve); duas amigas ou irmãs mexicanas aflitas com o terremoto do México; um ex-punk irlandês, que na outra encarnação tocou num buraco de Londres com Mick Jagger e hoje administra uma granja em Barcelona, acendendo um cigarro com mãos trêmulas.

Marco, o barman, nos oferece piscos sours (o coquetel clássico do Peru ), chilcanos (outro coquetel com pisco), gim tônicas com gim peruano. Há uma carta variada de destilados, alguns tipos de cerveja e de vinho. Vamos (os jornalistas convidados) de gim tônica. Além do gim, da água tônica e do gelo, Marco acrescenta uma rodela de laranja Cara Cara e pimenta "molle".

O rio Vilcanota corre o tempo inteiro ao lado do trem, em sentido contrário. É um lindo rio verde-esmeralda, agitado e não muito largo –quase se veem os olhos da lhama que bebe água na outra margem.

De almoço, uma das muitas variedades de milho peruano com queijo (entrada), corvina com iogurte cítrico (prato principal) e laranja Cara Cara com mousse de chirimoya (sobremesa). Vinho chileno e argentino. Chocolatinhos, cafés. E na janela, a paisagem, mudando sem parar.

No meio da tarde fazemos a primeira parada em Tinta, terra do revolucionário Tupac Amaru II. Lá tomamos uma van até Raqchi, onde, no século 15, os incas construíram um templo para o deus Wiracocha. Ruínas de pedra em estilo imperial –o mais perfeito dos encaixes. Casas da realeza. "Graneros" ou "colcas", isto é, reservatórios de batata, milho, quinoa e até peixe seco (estamos longe do mar). Nesse entreposto comercial viveram 1.500 pessoas. O caminho inca também passava por ali.

Luxo supremo: quando você volta para o trem, é recebido por um garçom solidário que lhe oferece uma toalhinha úmida para limpar as mãos, o rosto e o pescoço.

Antes do jantar, que segue o mesmo esquema do almoço, descemos em La Raya, o pico mais alto da viagem, com 4.319 metros, na divisa de Cusco com Puno, dois dos três Estados que o trem percorre –o último é Arequipa. Ao redor de uma igreja, do lado oposto à montanha Chimboya, coberta de neve, 20 ou 30 "cholas" (camponesas de sangue mestiço vestidas com chapéu, botas, saias-anáguas coloridas e casacos ricamente bordados) vendem agasalhos, gorros e luvas. Pergunto onde estão os homens, pois durante todo o dia só vi mulheres trabalhando. Elas riem e uma diz: "Vendo televisão".

Por volta das 23h estacionamos no porto de Puno, às margens do Titicaca.

SEGUNDO DIA

Depois do café, caminhamos até o cais e pegamos um barco. Um guia simpático e enciclopédico nos explica tudo, da formação do Altiplano peruano à espessura da pele da "Telmatobious culeus", a rã gigante do Titicaca, ameaçada de extinção.

Visitamos o arquipélago flutuante dos Uros, povo pré-incaico que vive em pequenas ilhas de "totora", um tipo de junco. Cada ilha leva um ano para ser construída e dura mais ou menos 25 anos. A cada duas semanas novas camadas de totora são depositadas sobre a palha velha. Em cada ilha mora uma média de cinco famílias, em casas de totora.

A economia dos Uros se limita à caça de aves, à pesca e à venda, para os turistas, de tecidos e barcos em miniatura. Desde o governo Fujimori, nos anos 1990, fazem uso de placas de energia solar; pelas portas abertas das cabanas, podemos ver suas televisões.

Navegando por mais uma hora, chegamos à terceira maior ilha do lago, Taquile. Seus 3.200 habitantes ainda se vestem como há 400 anos e usam técnicas tradicionais de tecelagem. Todos, homens e mulheres, são tecelões. Se um homem não sabe usar um tear ou manejar agulhas, nem pode casar.Aos 12 ou 13 anos, meninos e meninas têm que mostrar que são capazes de tecer seu próprio gorro.

Há praias lindas de água azul cobalto na ilha de Taquile. E trutas frescas, servidas com deliciosas batatas minúsculas, em forma de dedos tortos.

Quando voltamos a Puno, às 16h, somos recebidos por um chá da tarde (na verdade, um ponche com pisco), num galpão verde-musgo à beira-lago. Lareira, vista dos guindastes. E os rostos brancos dos europeus muito vermelhos por conta do sol forte.

Em pleno pôr do sol, o trem sai de Puno e, rumo à Arequipa, entra no deserto.

TERCEIRO DIA

Acordamos às 5h30 para ver o nascer do sol entre duas montanhas, sobre uma lagoa. Com exceção do trem e dos trilhos, não há nada de humano perto de nós. Só areia, pedra e mato ralo.

Da janela do vagão-restaurante, tomando café e lamentando o fim iminente da viagem, vemos um rebanho de lhamas pastando e, atrás dele, um vulcão. Américo, o guia, diz que há mais de 60 vulcões na região de Arequipa, alguns em atividade.

Fazemos uma última parada para conhecer as Cuevas de Sumbay (cavernas de Sumbay), em cujas paredes há pinturas rupestres –de lhamas (ou alpacas, ou vicunhas), de pumas e de um xamã– datadas de 6.500 anos. As paredes ilustradas ficam num cânion, a 30 metros de profundidade.

Antes de chegar a Arequipa, nossa turma de jornalistas desce na Reserva Nacional de Salinas e Aguada Blanca, criada em 1979 para proteger as vicunhas, àquela altura ameaçadas de extinção.

O trem –sem dúvida a melhor maneira de atravessar uma geografia milenar– vai embora, sacolejando de alegria, com seu bar flutuante com muita pena de nós.

O colunista viajou a convite da Promperú

*

Os quatro poemas a seguir foram criados pelo escritor Fabrício Corsaletti durante visita ao Peru

Lais Battiato

BARALHO NO BAR DO TREM

o velho ex-junky irlandês
hoje dono de uma granja
em Barcelona
e sua mulher magra e loura
que fala um pouco de espanhol
jogam baralho no bar do trem

sentados frente a frente
numa mesa ao lado
de uma janela para o deserto
ele bebe um copo de uísque
ela uma taça de espumante

de vez em quando
um dos dois encosta o pé
no pé do outro e faz um carinho
tão gratuito que quem o recebe
nem se dá ao trabalho
de erguer os olhos das cartas
para demonstrar gratidão

o moletom rasgado que ele veste
é a superfície mais opaca
deste hotel flutuante
ela usa tênis discretos

no vagão há outros turistas
que falam alto e tiram selfies
com as montanhas peruanas
cobertas de neve

eles jogam sem se importar com nada
como se tivessem acabado de fazer amor
como se tivessem acabado de se libertar
de um drama antigo
como se tivessem acabado de descobrir
que esta é a última viagem
que farão juntos

a cada gole
ela confere a paisagem
que nunca decepciona
e diz "look" para o marido
que vira a cabeça a tempo de ver
um rebanho de alpacas

a maneira como ele ri
quando ela vence uma rodada
a maneira como ela ri
quando ele vence uma rodada
parece a ponta de um iceberg
cujo nome é A Melhor Sensação do Mundo

o sol despenca
tingindo de negro
as silhuetas

*

Lais Battiato

BALADA PERUANA

as montanhas são eternas
cachorros, universais
homens pertencem ao tempo
não sabem que são mortais
mil anos passam depressa
neve e lhamas são iguais
alpacas lembram ovelhas
vicunhas são sensuais
viajei pelo Peru
por razões profissionais

conheci muitas pessoas
vi as Cuevas de Sumbay
Violeta, rosto quéchua
piscinas brancas de sais
Gretel, que estava de luto
Ana, que ama os jornais
Pierre, francês e argentino
Christian, selfies geniais
fiz Cusco–Puno–Arequipa
num trem cheio de cristais

subi o Valle del Colca
quase não respirei mais
naveguei no Titicaca
dormi na beira do cais
comi, vixe, mil ceviches
tomei chichas radicais
chá de coca é bem gostoso
condor andino no gás
vulcões pontilhando a estrada
e as cholas nos milharais

pedras incas, balcões verdes
campos onde cultivais
todo tipo de batata
este "adeus" é um "até mais"

*

Lais Battiato

EM AREQUIPA, PERU

no monastério de Santa Catalina
o azul enche o futuro de presente
e o vermelho puxa o presente
para trás
o azul vibra duas vezes a cada pátio
e o vermelho alonga o passado
nos muros de pedra vulcânica

é bom passar de uma cor a outra
do Claustro Mayor
ao Claustro de los Naranjos
como se tivéssemos outras vidas
para habitar vários espaços
ao mesmo tempo

–
alegria
foi reencontrar a moça escandinava
que agora fotografava
as grades da janela
do quarto de uma freira

–
há uma lavanderia feita de conchas gigantes
um jardim com frutas típicas da região
dezenas de canteiros de gerânios
e a palavra SILENCIO, sem acento
escrita num arco dramático

mas o que importa mesmo
no monastério de Santa Catalina
é ir do azul para o vermelho
do vermelho para o azul
feito um cachorro que procura um osso
feito um lobisomem que contempla a lua

Lais Battiato

VALLE SAGRADO DE LOS INCAS

o silêncio da montanha nevada
é maior que o silêncio da montanha verde
que é maior que o silêncio do campo de milho
por onde - vermelha - passa uma chola
ainda mais silenciosa do que a neve

*

Pacotes com o novo trem e outros roteiros pelo país

BELMOND ANDEAN EXPLORER
O trem percorre quatro rotas, sendo que a principal, com duas noites de duração, passa por Cusco, lago Titicaca e Arequipa (o roteiro também pode ser feito no sentido inverso). Nesse trecho, as partidas acontecem sempre às quintas. Após o fim da viagem, a empresa oferece traslado até o aeroporto de Arequipa, mas não há transfer até Cusco.

US$ 1.920 (R$ 6.280)
Viagem de duas noites no trem Belmond Andean Explorer, entre Cusco e Arequipa. Por pessoa, em cabine dupla com beliche. Valor sem aéreo, para saídas até dezembro. Na Lufthansa: lufthansacc.com

R$ 7.772
Seis noites em Lima, Cusco e Arequipa. Inclui passeios e duas noites no Andean Explorer em cabine dupla, de Arequipa a Cusco. Sem aéreo. Na CVC: cvc.com.br

US$ 2.802 (R$ 9.160)
Roteiro de nove noites, passando por Lima, Arequipa, Cusco e Vale Sagrado.
Com duas noites no Andean Explorer. Sem aéreo, inclui passeios com guia local. Na Adventure Club: adventureclub.com.br

R$ 2.852
Com aéreo a partir de São Paulo, cinco noites no hotel El Turista em Arequipa. Quarto duplo, com café da manhã. Na Expedia: expedia.com.br

R$ 3.742
Com saída em 6 de março do próximo ano, cinco noites em Cusco e mais aéreo de ida e volta a partir de Guarulhos. Inclui hospedagem com café da manhã e passeios. Na Latam Travel: latam.com.br

US$ 2.492 (R$ 8.150)
Viagem de nove noites, com hospedagem em hotéis de categoria luxo em Lima, Arequipa, Colca, Puno e Cusco. Sem aéreo, com seguro-viagem e passeios. Na RCA: rcaturismo.com.br


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