Folha de S. Paulo


Aventura de britânico pelo Brasil há 150 anos orienta visita ao interior

Em 7 de agosto de 1867, o estudioso e aventureiro inglês sir Richard Francis Burton (1821-1890) entrava no rio das Velhas, em Minas Gerais, num par de canoas remendadas "valendo cerca da metade" do preço pago a um alfaite português. Batizada de Eliza, a embarcação mais parecia, em suas palavras, "uma velha arca de Noé".

Tratava-se de uma das últimas grandes aventuras de Burton, descendo o rio mineiro e seguindo pelo rio São Francisco até o mar, entre junho e novembro, cruzando o interior de um Brasil que profetizava como país do futuro.
Cento e cinquenta anos depois, o ribeirão Sabará, descrito como "furioso", se resume, no fim de tarde de 7 de agosto de 2017, a um canal de esgoto sem força desaguando num rio das Velhas raso, na altura da movimentada ponte Saldanha Marinho, no centro de Sabará.

Burton se despediu da civilização acompanhado de três tripulantes e seguiu um "leito tortuoso, nunca mostrando uma milha à frente". Fluente em português, que aprendeu para ler e traduzir Luís de Camões, o explorador soube por nativos que o trajeto nunca tinha sido feito.

Ao buscar um retrato da realidade brasileira, pouco conhecida na Europa da época, e investigar oportunidades de negócios e de assentamentos britânicos no país, Burton registrou suas impressões como "uma sucessão de fotografias secas e duras, com linhas rudes, e cores escuras e cruas, onde não há sinal de embelezamento". Os relatos foram publicados em dois volumes, na obra "As Terras Altas do Brasil".

No início da viagem, ele visitou a igreja da Nossa Senhora da Conceição da Jaguara, construída por Aleijadinho e hoje em ruínas, mantida ainda de pé pela família que administra a fazenda histórica no município de Matozinhos.

Encostado num banco de areia do rio deserto, o explorador do passado vislumbrava cidades nunca erguidas, numa "terra de promessas, a expressão do infinito".

CAMINHOS DO OURO

Dois dos principais destinos no trajeto, Sabará e Diamantina, preservam importante patrimônio histórico e cultural com casario colonial, museus e igrejas centenárias, e seguem detendo visitantes com a hospitalidade encontrada por Burton, da qual ele reclamaria em tom de elogio como "o maior atrasador nas viagens no Brasil".

Sabará integra hoje a região metropolitana de Belo Horizonte, primeira capital e metrópole erguida na bacia do rio São Francisco.

Além dos caminhos montanhosos de Minas, onde "não há nada nivelado, a não ser o horizonte", Burton se impressionou com a vastidão dos campos gerais, que pareciam ter "a instabilidade do oceano, quando sabemos que há a solidez da terra".

Em Diamantina, ponto alto em seu roteiro, encontrou "os homens mais francos e as mulheres mais bonitas" e refletiu que "talvez a riqueza do lugar tenha alguma coisa a ver com isso".

Sobre os mineiros, a quem dedicou um capítulo, observou que ficam menos à vontade com estranhos do que os paulistas, e que por vezes "fecham os lábios e comem as palavras até que elas falhem em alcançar os ouvidos".

Prevendo o destino grandioso do que chamava de Terra do Cruzeiro do Sul, Burton sugere aos viajantes do futuro que comparem "o seu presente com o meu passado", possibilitando uma avaliação da "marcha do progresso".

PELO MUNDO

Não tivesse de fato existido, o estudioso e aventureiro inglês Richard Francis Burton, um dos maiores exploradores da era vitoriana, dificilmente teria sido inventado.

Ele levou uma vida intensa como homem de ação e de ideias, numa combinação única mesmo para os dias atuais. Não havia, na segunda metade do século 19, outros contemporâneos com quem compará-lo.

Burton desembarcou como diplomata no Brasil Império em 1865. Entre as diversas ocupações exercidas ao redor do mundo, foi soldado, tradutor, espião, geógrafo, antropólogo, orientalista, escritor e poeta.

Passou a infância entre a França e a Itália, demonstrando desde cedo talento para idiomas. Na juventude, com uma personalidade inquieta e rebelde, se sentia um estrangeiro na Inglaterra. Foi expulso da Universidade de Oxford em 1842 e, em seguida, ingressou, aos 21 anos, no exército da Companhia Britânica das Índias Orientais.

Prosseguiu no Oriente seus estudos imersivos em costumes, crenças e línguas nativas, servindo o Império Britânico primeiro em Mumbai, na Índia, depois em Karachi, hoje Paquistão, empreendendo as primeiras de suas diversas expedições.

Das jornadas mais célebres, quase todas acompanhadas por relatos publicados em livro, se destacam a peregrinação a Meca, em 1853, disfarçado como muçulmano e se valendo de sua fluência em árabe e pashtun, a entrada, em 1854, na cidade proibida de Harar -hoje Etiópia-, e a chefia da expedição da Sociedade Geográfica Real, que em 1858 alcançaria a desconhecida região das nascentes do rio Nilo, no interior da África.

O aventureiro ingressou no corpo diplomático em 1861, por influência da esposa Isabel. Após três anos na isolada ilha de Fernado Pó, hoje território da Guiné Equatorial, foi designado como cônsul britânico em Santos, no litoral paulista, permanecendo no posto até 1868.

'TERRAS ALTAS'

Da estadia brasileira resultaria a publicação, em 1869, dos dois volumes da obra "As Terras Altas do Brasil" ( "The Highlands of the Brazil"), relato de sua viagem de cinco meses pelo interior do país realizada entre junho e novembro de 1867.

Ele descreveu sua rota por terra partindo do Rio de Janeiro e atravessando a então província das Minas Gerais até Sabará, registrando na sequência o trajeto de cerca de 1.850 quilômetros percorridos pelo rio das Velhas até o São Francisco, alcançando a cachoeira de Paulo Afonso na Bahia e seguindo até o mar na foz do Velho Chico, entre Alagoas e Sergipe.

Antes de deixar a América do Sul, visitou campos de batalha da Guerra do Paraguai, assumindo, no ano seguinte, o consulado britânico em Damasco, na Síria.

Em seu último posto consular em Trieste, no nordeste da Itália, onde permaneceu por quase 18 anos até sua morte, em 1890, se ocupou, entre outros textos, das polêmicas traduções de clássicos da literatura oriental, compilando e apresentando ao Ocidente o "Kama Sutra", além de traduzir do árabe e do persa as obras "As Mil e uma Noites" e "O Jardim Perfumado".

Poucos lugares foram tão elogiados por Burton como o vale do São Francisco, que imaginava uma parada obrigatória num futuro "grand tour" do continente.

Acreditava que, além de Minas, Rio e São Paulo, a aventura da colonização seria concentrada nas margens do Velho Chico, segundo ele o Missisipi brasileiro, levando o país no curso do progresso e do desenvolvimento.

Burton pregou as virtudes da geografia local e previu que, com os investimentos certos em infraestrutura (nunca adotados), o país teria um papel central nos rumos da humanidade.

Rischgitz
O explorador Richard Burton em 1864, três anos antes da expedição ao interior do Brasil
O explorador Richard Burton em 1864, três anos antes da expedição ao interior do Brasil

MUSEU E CERVEJA

"O único museu no mundo dedicado a um dos indivíduos mais extraordinários do mundo", assim é a descrição do pequeno Museu Sir Richard Burton, localizado na cidade costeira de St Ives, na Cornualha, região mineradora no sudoeste da Inglaterra.

Criado pelo artista performático Shanty Baba, o espaço foi inaugurado há um ano e meio nos fundos da própria casa e recebe uma mão de visitantes semanalmente, servindo também de palco para apresentações bem-humoradas sobre Burton.

"Ele era o modelo perfeito para um garoto de 14 anos, tinha a rebeldia, a postura anti-establishment", diz por telefone Baba, que conta ter tido contato com os escritos do conterrâneo na adolescência, "mas era um inglês esquecido, mesmo em sua época, passou só seis anos no país".

Do outro lado do Atlântico, em Penfield, no Estado de Nova York (EUA), o cientista de dados Gavan Tredoux se incumbiu de uma missão parecida como criador e editor do site burtoniana.org, a mais completa fonte de informações sobre Burton.

Ele passou os últimos dez anos divido entre o trabalho numa multinacional e pesquisas no tema, em três continentes. Segundo Tredoux, se o interesse acadêmico no assunto é pequeno, o de "colecionadores é extremo".

Primeiras edições raras de Burton, conta Tredoux, alcançam até 200 mil libras em leilões (R$ 850 mil).

Tredoux acredita que a força da escrita e do exemplo de Burton permanece na mistura singular de coragem e intelecto. "Um grande explorador e um grande linguista, honesto e direto, tratava seus leitores como adultos", diz.

O único memorial dedicado a Burton é um mausoléu que abriga o seu túmulo e o da mulher numa igreja católica em Mortlake, nos arredores de Londres.

Fora coleções privadas, o acervo do explorador no Instituto Real de Antropologia foi, na maior parte, vendido para a coleção da Biblioteca Huntington (Califórnia).

Segundo Tredoux, estariam lá manuscritos não traduzidos de "As Terras Baixas do Brasil", relatos de excursões a partir de São Paulo.

No balcão do bar Uamií, em Belo Horizonte, uma homenagem etílica e inusitada registra a passagem do explorador inglês pelo Brasil. "É a nossa cerveja mais vendida", diz Normando Siqueira, apontando para a "american pale" Captain Burton, um dos cinco rótulos batizados com nomes de viajantes que percorreram a região da nascente do rio das Velhas, onde é fabricada a bebida.

Adepto de álcool e outras substâncias inebriantes, Burton escreveu sobre dificuldades físicas e mentais enfrentadas por exploradores: "Em regiões tropicais perigosas, morre antes quem bebe água".

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AS TERRAS ALTAS DO BRASIL
AUTOR Richard Burton
TÍTULO ORIGINAL "The Highlands of the Brazil"
QUANTO disponível para download, em inglês, em burtoniana.org (921 págs.)


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