Folha de S. Paulo


opinião

Riqueza do queijo da Canastra está nas suas irregularidades

Por que diabos os queijos produzidos da mesma forma e a partir de tecnologia herdada dos portugueses há mais de 200 anos podem ser diferentes uns dos outros?

A riqueza desse alimento vivo, que nasce como mecanismo para conservar o leite, está justamente em suas particularidades. O dia em que um queijo for igual ao outro vira indústria, costumam dizer os produtores mineiros.

Laticínios feitos na Canastra, cuja tradição é ameaçada por excesso de intervenção e legislação demodê que limita a confecção e o comércio de produtos feitos com leite cru, são identificados por traços comuns, porém.

São encorpados, mais largos e baixos que os de outras regiões mineiras, têm casca firme e amarelada, mantêm interior úmido de textura macia, sabor levemente picante e ácido, não muito salgado.

Na hora de comprar, aliás, evite queijos muito claros, que sugerem pouco tempo de vida e devem apresentar menos sabor; cascas muito lisas, que podem ser resultado de uma salmoura muito diluída; peças trincadas ou sinais de inchaço -pode estar relacionado a fermentação malfeita e apresentar amargor.

Queijos da Canastra têm a virtude da versatilidade: se prestam ao consumo rotineiro e ganham potência e complexidade quando envelhecidos, processo no qual desenvolvem nuances e sabores "sui generis", às vezes agridoces, criando paralelos com safras do vinho.

O que lhes dá essas características é o "terroir" (condições climáticas, solo e pastagem, água e tipo de bactérias que ali se desenvolvem), o modo de fazer (com leite bovino cru ainda morno, prensagem manual, uso do pingo como fermento -produto do dessoramento da massa coletado depois da prensa e reintroduzido no lote feito no dia seguinte), e seu valor secular cultural e histórico, identitário de Minas.

Na Canastra, queijo é modo de vida, expressão de famílias sustentadas unicamente por esse produto, em pequenas propriedades, a transmitir esse fazer oralmente, de geração em geração. Exerce a capacidade de manter essas pessoas aderidas à terra, evitando que migrem.

Hoje vivemos um resgate do queijo maturado, processo que ele sofria obrigatoriamente, no passado, quando era transportado em lombos de animais por estradas de relevo acidentado, em viagens que demandavam tempo.

Com o avanço da distribuição, passou-se a consumir em larga escala queijos mais frescos, jovens e (também por isso) baratos.

Mas é via maturação, na qual há perda de umidade e formação de cristais de açúcar na massa (que lhe dá aparência semelhante a um grana padano italiano), que o queijo alcança seu auge, sua plenitude sensorial, ganha intensidade e personalidade.

Seu preço sobe, contudo. O produto perde volume e requer mais tempo, é matemático. Por uma boa experiência, que carrega ainda o bônus de movimentar histórias de vida, vale pagar a conta.


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