Folha de S. Paulo


Na onda do 'turismo de experiência', ricos brincam de fazer vinho na França

A região francesa de Bordeaux é o lar de produtores de vinho como Château Lafite Rothschild e Château Margaux, e por isso pode parecer improvável que vinhos com nomes como "Duke of Juice" (duque do suco) e "Bone Ami" (trocadilho de bom amigo, em francês, com osso, em inglês) se originem de lá.

Eles ganham esses nomes porque seus criadores pagam entre US$ 12,5 mil e US$ 25 mil (de R$ 41 mil a R$ 81 mil) por barril para fazer vinhos personalizados (por garrafa, isso dá até US$ 87, ou R$ 286).

A Château Lynch-Bages, vinícola famosa por tintos refinados, também opera a Viniv, empresa que ajuda a criar vinhos. Os clientes selecionam uvas entre três variedades, de 13 vinhedos, e influenciam na formulação do sabor da bebida, mas deixam a colheita e esmagamento das uvas, o envelhecimento, gestão de barris e o transporte aos especialistas do "château".

"Sempre sonhei comprar um vinhedo, mas esse é um negócio ingrato, que requer muito capital", diz Sébastien Boucraut, 46, executivo francês que vive em Dubai e criou um vinho na Viniv com dois velhos amigos. "É brilhante, você pode fazer seu vinho com todas as vantagens e nenhuma das inconveniências".

O rótulo que eles criaram porta o nome "Racine Carrée de Neuf", ou raiz quadrada de nove.

O conceito se parece com o de empresas que permitem a criação de bichos de pelúcia personalizados, mas a Viniv tem prestígio e uma clientela crescente na Europa, na Austrália e nos EUA. Stephen Bolger, 52, criador da marca, a descreve como "uma companhia de luxo experiencial".

E "experiências" de luxo são a nova bolsa Birkin –super-ricos não se contentam mais em só ser donos de relógios e carros caros, preferem colecionar momentos (e postá-los no Instagram).

"Os turistas ricos não querem conviver com outros turistas; querem se conectar com pessoas reais e viver uma história", diz Jack Ezon, presidente da Ovation Vacations, agência de luxo que organiza viagens em que os clientes podem dançar em um ensaio do balé Bolshoi, fazer cerâmica com artesãos peruanos e almoçar com Salvatore Ferragamo para criar sapatos com ele.

É uma espécie de realidade virtual verdadeira: uma aventura de fantasia vivida com pessoas reais e sem visores.

REALIZAÇÃO PESSOAL

O consumo conspícuo não se moderou. As vendas de iates, carros e joias são mais altas do que antes da crise de 2008. Mas a recessão acalmou as coisas.

"Houve uma mudança de valores depois de 2008, e o materialismo ostensivo foi deixado de lado", afirma Marie-Cécile Cervellon, professora de marketing na Edhec, escola francesa de administração de empresas. Os consumidores mais abastados estão optando por gastar dinheiro com a realização pessoal e a promoção da união familiar, ainda que em lugares aos quais pouca gente tem acesso.

Jeff Fromm, sócio da agência de publicidade Barkley e coautor de um livro sobre marketing para a geração milênio, diz que isso é parte da "mentalidade milênio", que está se espalhando para outras gerações. "Um em cada quatro membros da geração dos millenials prefere pagar por uma experiência a pagar por um produto", diz.

Em 2014, o Boston Consulting Group alertou que "nenhum fabricante de bens de luxo pode ignorar a troca acelerada do 'ter' pelo 'ser'".

O empreendedor de Los Angeles Pete Johnson, 45, descobriu a Viniv em 2010, quando um colega de um clube de charutos lhe contou que estava fazendo vinho em Bordeaux. "E eu respondi que era exatamente aquilo que eu queria fazer –fazer vinho em Bordeaux".

Desde então, Johnson produziu cinco safras (incluindo a "Bone Ami" e a "Duke of Juice") e calcula ter gasto mais de US$ 150 mil, sem incluir passagens e estadias. "Estou produzindo o melhor vinho possível para o meu palato. Não é um vinho barato qualquer", ele diz.

A Viniv atende a clientes dispostos a investir tempo, esforço de viagem e dinheiro –e a romper um tabu em Bordeaux. Bolger oferece aos clientes três variedades de uvas de 13 vinhedos, permitindo que misturem um cabernet sauvignon de Pauillac com um merlot de Pomerol. Para a elite do vinho em Bordeaux, misturar uvas de designações diferentes é o equivalente vinícola da eugenia, um sacrilégio.

"Recentemente, um agricultor mais velho se recusou a me vender uvas", diz Bolger. Mas ele afirma que as rejeições são raras, porque os vinhos da Viniv não são vendidos comercialmente; são produzidos para o prazer de seus criadores.

"Não é um truque de marketing", afirma. "É uma maneira real e inteiramente diferente de produzir vinho fino". E de causar impressão.

"Acho que é divertido servir o vinho que eu mesmo faço em um jantar para os amigos, em lugar de servir algo banal", explica Sébastien Boucraut.

Muitos clientes dizem que vão à região não só para fazer vinho, mas para ingressar em um mundo sofisticado, fechado aos turistas comuns.

Na primavera, papoulas selvagens florescem nos vinhedos em torno de Pauillac. Trepadeiras galgam as paredes dos elegantes "châteaux" e igrejas medievais da região. Os bistrôs servem ostras da baía de Arcachon. E Bolger organiza degustações e refeições privadas em castelos vizinhos, incluindo o Château Petrus –que, para um turista comum, é mais difícil de visitar do que uma central de comando nuclear.

O Château Lynch-Bages também oferece visitas privativas, adaptadas aos clientes de alto patrimônio. "É muito íntimo, e não uma excursão comum daquelas em que o visitante ganha um copinho de vinho e ouve uma decoreba", diz Hank Werronen, 73, executivo de saúde aposentado dos Estados Unidos.

Ele descobriu a Viniv depois de ganhar uma viagem a Bordeaux em um leilão beneficente da Associação Cardíaca Americana. "Não estou fazendo um vinho, mas criando memórias", diz.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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