Folha de S. Paulo


Vilarejo na Itália com pouquíssimos habitantes resiste à própria morte

Perdoe Sandro Rocchi se ele parece satisfeito demais enquanto aprecia uma taça de vinho tinto ao meio-dia, no restaurante dos seus filhos, e desfruta o improvável renascimento desse deslumbrante vilarejo italiano no topo de uma colina.

Rocchi havia saído de lá nos anos 1970 por falta de perspectivas. Agora há lojas, restaurantes, propriedades de luxo e uma avalanche de turistas.

"O povoado voltou à vida", comemora. Mas há um pequeno problema. Pouco a pouco, e de forma permanente, Civita di Bagnoregio está desaparecendo. E tem sido assim por séculos. Deslizamentos de terra gradualmente degradaram os penhascos, a ponto de eliminar a antiga moradia de pedra do mais famoso filho da terra, Giovanni di Fidanza, o teólogo medieval canonizado como São Boaventura.

Durante anos, essa guerra perdida para o atrito geológico não tinha muita importância porque quase ninguém morava em Civita, e eram poucas as pessoas que visitavam a pequena cidade.

A população ainda é pequena –talvez tenha seis habitantes, talvez oito–, mas Civita, a 121 km ao norte de Roma, no centro da Itália, agora é um dínamo do turismo, com mais de 500 mil visitantes esperados neste ano.

É candidata a se tornar patrimônio mundial da Unesco. É o destaque de uma campanha de turismo local e aparece em propagandas de ônibus que circulam por Roma. É, todo o mundo concorda, uma maravilha.

E continua a se desintegrar, ainda que lentamente. Em maio, uma encosta cedeu perto da estrada suspensa, com uma única pista, que leva à passarela que conduz ao vilarejo. A estrada permanece estável, e equipes estão trabalhando nas encostas. Os turistas, ao que parece, nem perceberam.

Um geólogo da região estimou que Civita sofreu cerca de dez deslizamentos de terra no ano passado, alguns deles pequenos, outros mais graves.

"A chuva é o problema principal", disse o geólogo, Giovanni Maria Di Buduo, supervisor de um museu local dedicado à geologia de Civita e dos arredores. "A chuva entra nas fraturas da rocha vulcânica e cria alterações. Nos últimos cinco séculos, vimos uma redução do penhasco cerca de 20%, devido aos deslizamentos."

Dado o recém-descoberto comércio turístico, bem como a importância histórica e cultural de uma aldeia originalmente construída pelos antigos etruscos, o governo regional do Lázio planeja ações para responder ao problema.

Uma possibilidade é fazer pressão por uma legislação nacional que conceda estatuto especial e financiamento para Civita. Além disso, funcionários do Lázio dizem que vão elaborar um plano de dez anos com uma abordagem holística que tenha por objetivo reforçar e proteger o vilarejo, depois de esforços feitos de forma mais específica para problemas pontuais no passado.

"Sabemos que foram feitos investimentos antes, mas foram muito dispersos", disse Fabio Refrigeri, autoridade municipal do Lázio. "Não foi algo eficiente."

HISTÓRIA DE LUTA

Os etruscos construíram Civita há mais de 2.500 anos. Trata-se de uma das muitas aldeias fortificadas, em topos de colinas, para que se protegessem dos invasores nos vales abaixo. Mas com o passar dos séculos e as mudanças bélicas, que eclipsaram as vantagens estratégicas de Civita, a cidadezinha ficou cada vez mais isolada.

Para piorar, um terremoto atingiu o vilarejo no século 17; o governo local foi transferido para o que era o povoado vizinho Bagnoregio, e que ainda hoje é responsável por Civita.

Depois a erosão piorou o problema. Os deslizamentos de terra transformaram a aldeia em uma ilha compacta, quando uma ponte de terra que ligava Civita a Bagnoregio gradualmente se desintegrou (posteriormente foi substituída por uma passarela de aço e concreto, utilizada hoje em dia). Mapas no museu geológico da cidade documentam o encolhimento permanente de Civita e como a erosão mastigou seu tufo vulcânico calcário.

"Esse deslizamento foi de novembro do ano passado", disse Luca Profili, vice-prefeito de Bagnoregio, ao apontar cascalhos no fundo de um penhasco. À distância, a paisagem que rodeia Civita é uma mistura de vales verdes imersos em encostas brancas, calcárias, em erosão. "Se você olhar as fotos do ano passado, essas áreas mudaram, porque o solo é muito frágil", acrescentou Profili.

Não muitos anos atrás, o declínio parecia inevitável, o que talvez explique o apelido de Civita: "Il paese che muore", ou "o vilarejo que está morrendo". A não ser pelo fato de que não morreu nem um pouco.

O então papa Bento XVI visitou a catedral de Civita em 2009 para prestar uma homenagem a São Boaventura. Autoridades de turismo no Lázio promoveram Civita em campanhas publicitárias de alcance nacional. Reportagens nos meios de comunicação destacaram a novidade de uma aldeia medieval intocada no topo de um penhasco irregular, confrontado pela erosão. Era irresistível e incrivelmente pitoresco.

"A fragilidade da Civita é ruim, mas é isso também o que faz dela um lugar único", disse Profili. "É a ideia de que você a tem hoje, mas não sabe se a terá amanhã."

Agora restaurantes e lojas de lembrancinhas se abastecem para atender ao fluxo de visitantes. Vários edifícios de pedra foram convertidos em bed and breakfast. Corridas de burros acontecem na pequena praça duas vezes por ano. Na Sexta-Feira Santa, o grande crucifixo da catedral é levado em uma procissão para Bagnoregio -e sempre volta, porque reza a lenda que Civita desaparecerá se o crucifixo não estiver de volta até a meia-noite antes da Páscoa.

Arianna Bastoni, proprietária do La Cantina di Arianna, um restaurante ao lado da praça, vive a maior parte do ano em um apartamento no andar de cima do estabelecimento. Os dias são de muito trabalho agora, já que ela e outros integrantes da sua família não param de correr para servir à enxurrada de turistas.

Mas se Civita fica cheia durante o dia, a cidadezinha se esvazia à noite, a não ser pelos hóspedes dos bed and breakfasts ou os resistentes que chamam esse lugar de casa.

"É muito tranquilo", disse Bastoni. "Por volta das sete da noite, todos os turistas vão embora. E então há um silêncio incrível."

Para Rocchi, 70, o renascimento de Civita é um prazer inesperado. Várias gerações da sua família viveram aqui até que ele abandonou o vilarejo nos desesperados anos 70.

"Houve uma época, nos anos 60 e 70, em que você não conseguia emprego", disse ele. "Então todo o mundo foi embora."

Agora seu filho, Maurizio, e sua filha, Alessandra, têm um restaurante popular, Alma Civita. Rocchi passa as manhãs nas encostas próximas caçando trufas, antes de voltar para comer.

"Eu deixo as trufas para eles", disse. "E eles me fazem o almoço." Não é um mau negócio em um vilarejo que talvez não esteja morrendo, no final das contas.

Tradução DENISE MOTA


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