Folha de S. Paulo


Turista conhece Berlim que inspirou David Bowie

Quando eu tinha 20 anos, vi David Bowie criando uma canção. No estúdio de Berlim, onde cinco meses antes ele havia gravado "Heroes", Bowie se acomodou ao piano tendo a sombra de uma ideia e tirou do ar uma melodia.

Naqueles poucos minutos, e nos poucos meses em que trabalhamos juntos (em um filme no qual ele era o astro e eu assistente de direção), comecei a compreender como o espírito criativo pode transformar o mundo.

Na metade dos anos 1970, Bowie havia se mudado para Berlim para se reinventar. Nos cinco anos anteriores, havia se transformado no primeiro grande astro pop pós-moderno. Criara o andrógino personagem Ziggy Stardust, e o descartara em troca de Alladin Sane e Thin White Duke.

Meisel Musikverlag Berlin/Divulgação
Sala de gravação do antigo Hansa Studio, onde Bowie produziu disco de Iggy Pop e algumas partes do álbum 'Heroes
Sala de gravação do antigo Hansa Studio, onde Bowie produziu disco de Iggy Pop e algumas partes do álbum 'Heroes'

"Foi quando tudo começou a dar errado", ele afirmou, descrevendo sua vida profissional como personagem. "Toda minha personalidade foi afetada... Comecei a duvidar de minha sanidade."
Em Berlim, ele abandonou as máscaras que havia criado e se reconstruiu como homem comum. Usava calças largas, camisas sem graça e apreciava o desinteresse dos berlinenses quanto a ele. Ninguém o incomodava na rua.

Certa noite, por capricho, ele subiu em um palco de cabaré para cantar Frank Sinatra. A audiência local pouco ligou e pediu que ele parasse de cantar, porque estavam lá para ver outra pessoa.

Longe dos holofotes, ele compunha, pintava e, pela primeira vez em anos, "sentia alegria de viver e uma grande sensação de libertação e de cura".

Hoje, os riffs da Berlim de Bowie ainda ecoam na cidade. O Dschungel, clube que definiu a vida noturna da Berlim Ocidental dos anos 1970 e sobre o qual ele canta em "Where Are We Now?", single de 2013, se tornou o quatro-estrelas Ellington Hotel.

O elegante Paris Bar, onde ele e o colega de apartamento Iggy Pop celebravam aniversários, continua a servir o melhor filé com fritas da cidade.

Fãs dedicados tocam os hits de Bowie em seus iPhones diante do Hansa Tonstudio, onde ele gravou os álbuns "Low" e "Heroes" (ambos de 1977). Outros ocupam os cafés no arborizado bairro de Schöneberg, onde ele vivia.

Para mim, uma lembrança daqueles dias perdura indelevelmente. Foi um primeiro Natal juntos. Bowie e meu chefe, com seus parceiros, filhos e agregados. Em Forsthaus Paulsborn, a sombria floresta urbana que se estende a oeste da cidade, todos comemos e bebemos demais, e Bowie me deu de presente uma biografia de Fritz Lang.

No final daquela noite, em pé diante dos mictórios, cantamos Buddy Holly juntos (ou pelo menos um verso e meio de "Good Golly Miss Molly").

Passados tantos anos, o Forsthaus Paulsborn, distante de áreas turísticas, continua a ser um dos mais cativantes restaurantes de Berlim, mas, infelizmente, cantar nos sanitários já não é encorajado.

A SERVIÇO

Talento é um dom conferido a um artista, e a pessoa precisa trabalhar a serviço desse dom. O fruto desse esforço é em seguida oferecido aos demais de nós e, por sua vez, pode despertar nossos dotes ou sonhos pessoais.

Daí a importância de visitar os lugares de inspiração e transformação. Entre os mais importantes para os fãs de Bowie está o Brücke Museum, que ele frequentava para contemplar as obras de Kirchner, Nolde e Erich Heckel.

Até hoje, os traços dos expressionistas capturam uma sensação de efemeridade, como capturaram a imaginação de Bowie. Em uma visita ao museu, ele passou quase uma hora olhando o quadro "Amantes entre os Muros de um Museu", de Otto Müller, retrato de uma despedida na Primeira Guerra Mundial, e começou a reimaginar a cena.

O museu, fora de mão, é muitas vezes desconsiderado na corrida para visitar locais mais famosos –mas não mais inspiradores- da cidade.

O Muro de Berlim comoveu Bowie, é claro, e o mudou. Ele pedalava ao longo do muro, como os turistas ainda podem fazer (ainda que por sorte não mais cercados por soldados soviéticos). No ponto focal dos conflitos mundiais, Bowie desenvolveu uma visão mais coerente para si.

Em 1977, Bowie estava presente quando Iggy Pop criou a letra de "China Girl", em pé ao microfone. Em Berlim, depois de gravar as trilhas instrumentais de seu novo álbum, Bowie decidiu seguir esse método de composição instantânea, anotando um verso ou dois e depois improvisando enquanto a fita rolava. As palavras nunca surgiam antes da música e, portanto, o som jamais servia apenas para ecoar seu significado.

No piano, ele começou a rascunhar uma letra, e fez dessa canção a faixa-título do álbum "Heroes". Seus surtos de inspiração eram seguidos por períodos de contemplação. Quando a gravação da faixa estava na metade, ele pediu para ser deixado sozinho ao piano, para pensar.

O produtor Tony Visconti deixou o estúdio e foi caminhando até a Potsdamer Platz, então dividida em duas metades, onde encontrou a cantora de apoio Antonia Maass, que era sua amante.
Da janela do estúdio, Bowie viu os dois se beijando, sob o muro. Duas horas depois, a versão final da letra estava gravada. Bowie e Visconti adicionaram os vocais de apoio. "Heroes", com sua referência aos guardas de fronteira disparando por sobre as cabeças de um jovem casal, se tornou o hino de Berlim em forma de rock.

O Hansa não está aberto ao público, exceto em visitas guiadas por Thilo Schmied (veja abaixo), o guia que mais conhece música em Berlim.

Bowie definiu "Heroes", e seus três álbuns berlinenses, como seu DNA. A canção entrou vezes sem conta em listas de singles mais importantes e originais da música moderna. Dez anos depois de sua gravação, ela pode até ter ajudado a derrubar o muro.

Em 1987, Bowie voltou à cidade dividida para um show para 70 mil fãs. Velas e fogos brilhavam em torno do Reichstag. Perto do final do show, ele leu uma mensagem em alemão ao público: "Desejamos tudo de bom aos nossos amigos do outro lado do muro". E depois cantou "Heroes".

Do outro lado da divisa, jovens se esforçavam para ouvir os ecos do concerto. Ouviram a saudação de Bowie a eles. Ouviram a canção que ele cantava. A canção de Berlim. A canção deles. Quando "Heroes" chegou ao clímax, parte dos ouvintes orientais correu rumo ao portão de Brandemburgo, gritando "abaixo o muro". Insultaram a polícia, lançando garrafas contra os guardas, unidos contra os capangas do Partido Comunista em um momento de protesto. Do palco, Bowie ouviu os gritos. Ficou com lágrimas nos olhos.

"Foi uma das apresentações mais emotivas que já fiz", ele disse, mais tarde. "Foi muito doloroso. Nunca tinha feito nada parecido na vida e creio que nunca mais farei... Foi extraordinário."

Em Berlim, Bowie fez sua jornada do vício à independência, de celebridade paranoica ao mensageiro radical e independente que disse a todos nós que éramos bonitos, que podíamos ser nós mesmos. Hoje o muro se foi, e o riso das crianças ecoa nas praças sem árvores onde um dia ele se erguia, mas a música e a maravilha permanecem, naquela que é agora a mais transformada e criativa capital europeia.

RORY MACLEAN é autor de "Berlin: Imagine a City", disponível no Reino Unido pela editora Weidenfeld & Nicolson e nos Estados Unidos pela St Martins Press

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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