Folha de S. Paulo


Livraria de bairro sobrevive a crises e chega aos 75 anos em Buenos Aires

Um casal sai discutindo pela calçada. Poderia ser uma briga comum, mas, de suas bocas, sai um diálogo escrito pelo norte-americano David Foster Wallace (1962-2008).

O transeunte desavisado pensa que aquele homem e aquela mulher são um casal de verdade e desvia, incomodado. Olha de soslaio e então vê, através da vitrine, um monte de olhos voltados para a mesma cena, atentos. Para uns minutos para ver como termina o episódio e, pouco depois, junta-se aos aplausos dos que assistiam do lado de dentro.

David Fernández/Efe
Ambiente da loja, no bairro da Recoleta
Ambiente da loja, no bairro da Recoleta

A passagem ocorreu há alguns dias, na livraria Clásica y Moderna, na calle Callao, 892, no bairro da Recoleta, em Buenos Aires. Tratava-se de uma cena da peça "Breves Entrevistas com Homens Hediondos", dirigida por Marc Caellas.

Montagens pouco convencionais como essa são comuns e dão personalidade ao tradicional espaço literário e de espetáculos, que agora completa 75 anos.

De segunda a sexta, a Clásica y Moderna tem uma ativa programação de leituras, palestras e montagens teatrais, tornando-se uma referência entre as livrarias portenhas.

A Clásica, como é mais conhecida, é um espaço de paredes de tijolos vermelhos.

Num primeiro ambiente, está o café, com os jornais do dia de vários países disponíveis aos visitantes. Um pequeno palco dá lugar às apresentações noturnas. Ao fundo, quase como se fosse a entrada de uma caverna, está a livraria, especializada em literatura, artes e psicanálise.

"Somos uma livraria que está ligada à história de Buenos Aires", explica Natu Poblet, filha e neta dos livreiros que deram origem ao negócio.

O avô e o pai de Natu chegaram de Vigo, Espanha, de navio, em 1911. Vinham atraídos por aquela cidade que vivia a euforia do primeiro centenário do país e de seu súbito enriquecimento por causa da exportação de carne.

Mudanças urbanas, abertura de cafés e formação de um público refinado davam às livrarias um status especial.

Pai e filho trabalharam em alguns endereços, depois abriram a livraria Acadêmica, que funcionou em alguns locais do centro. Até que, em 1938, compraram o espaço onde hoje é a Clásica.

"Isso fez toda a diferença, pois o fato de possuirmos o imóvel nos permitiu atravessar todas as crises que a Argentina viveu desde então", conta Natu.

Hoje em dia, as livrarias de bairro portenhas têm muita dificuldade para resistir -por causa da expansão das grandes lojas, como a Ateneo, e por conta dos altos aluguéis, afetados pelo dólar paralelo, que não para de aumentar no país.

"É praticamente impossível pagar um aluguel em lugar nobre de Buenos Aires vendendo livro. É preciso vender coisas caras ou mesmo armas, senão não dá", diz, em tom de brincadeira.

Devido a restrições às importações, a Clásica tem trabalhado com títulos editados na Argentina. De vez em quando, porém, Natu traz alguns volumes de viagens à Espanha.

"É uma livraria muito querida dos estrangeiros. Nesse sentido, cumpre um pouco com seu destino histórico desde que abriu", diz Natu.


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