Folha de S. Paulo


Indígenas do Pará tentam lidar com dívidas após corte de repasses da Vale

Veja vídeo

Indígenas da aldeia Kyikatêjé, localizada em uma reserva de Marabá, no sudeste do Pará, estão endividados. Oito meses após a interrupção de um contrato com a empresa Vale, os gaviões, que eram conhecidos na cidade por terem bom crédito, passaram a acumular dívidas.

O repasse foi suspenso em fevereiro deste ano e só voltou em outubro, após o Ministério Público Federal mover uma ação obrigando a mineradora a retomar os pagamentos. Agora, os índios tentam pagar as dívidas acumuladas nesses oito meses.

A relação entre a Vale e os gaviões remonta aos anos 1980, quando foi inaugurada a estrada de ferro Carajás, que fica na área de influência da Terra Indígena Mãe Maria.

A empresa afirma que os repasses se referem a um acordo voluntário da mineradora com o povo gavião, e que foram suspensos porque os indígenas bloquearem a ferrovia em um protesto em fevereiro de 2015.

Os indígenas afirmam que desde o início do ano a Vale já vinha dando indícios de que o contrato seria interrompido. "Eles vieram aqui em janeiro, disseram que este ano seria de crise, que haveria cortes e demissões", diz Zeca Gavião, cacique da Kyikatêjé.

Os índios afirmam ainda que apenas uma aldeia bloqueou a estrada de ferro, por não concordar com os termos de renovação do contrato, mas que todas as 11 comunidades da Terra Indígena Mãe Maria foram prejudicadas pelo corte dos repasses.

"O impacto maior que tivemos foi com nosso nome, que ficou sujo na cidade", diz o cacique. Ele relata que os recursos são investidos em quatro eixos principais: saúde, educação, atividade produtiva, vigilância da reserva. O que sobra é distribuído entre as famílias, de forma igualitária.

"É como se uma prefeitura parasse de receber recursos de uma hora para outra. Nesse cenário, fica difícil honrar os compromissos já firmados, e as dívidas surgem mesmo", explica Alexandre Damaceno, economista da UFPA (Universidade Federal do Pará) e membro do Gefam (Grupo de Educação Financeira da Amazônia), que oferece aulas de educação financeira para indígenas e ribeirinhos em situação de vulnerabilidade.

A Folha acompanhou Damaceno em uma aula na aldeia Kyikatêjé. "Quem aqui tem dívida?", perguntou, fazendo quase todos levantarem a mão. "Essa é uma realidade nas aldeias. Eles não estão isolados como a gente tem no nosso imaginário", diz o professor.

Praticamente todas as casas na aldeia têm um automóvel próprio, que é utilizado para atividades do dia a dia, como caça e preparação de festas tradicionais, e na vigilância da reserva.

Os indígenas relatam que, com a crise, os custos de manutenção dos veículos aumentaram. Um indígena, que prefere não se identificar, diz que está com as parcelas da caminhonete atrasadas. "O dinheiro diminuiu, e aí eu não tive como pagar [o financiamento]", afirma.

"Eles também são suscetíveis às marcas e à publicidade, são consumidores como nós. Eu digo que a nossa cultura quer ver o indígena pelado na floresta, mas na hora de vender e cobrar prefere vê-los como não indígenas", diz Damaceno.

Quando conseguirem superar as dívidas, os gaviões querem começar a poupar e diversificar suas atividades para garantir renda em períodos turbulentos. "Quero criar uma marca para comercializar produtos da floresta no exterior como açaí, cupuaçu e castanha", diz o cacique Zeca Gavião.

THIAGO FORESTI fez o 1º Programa de Treinamento em Fotojornalismo e Vídeo da Folha, patrocinado por Friboi, Odebrecht e Philip Morris Brasil. O trainee viajou com o apoio da Abear (Associação Brasileira das Empresas Aéreas).


Endereço da página:

Links no texto: