Folha de S. Paulo


Unifesp reduz atendimento, coloca alunos na limpeza e atrasa conta de luz

Veja vídeo

O aposentado José Trevisan, 80, chegou há seis anos no setor de oftalmologia do Hospital São Paulo (HSP) quase sem enxergar. Em Santa Bárbara d'Oeste, no interior paulista, onde ele vive com as três filhas, não havia tratamento para o seu caso.

Foi operado, mas continua retornando todo mês ao hospital da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), porque desenvolveu um glaucoma e está em fase de observação após a cirurgia mais recente. E ele tem sorte, já que o hospital reduziu o número de cirurgias oftalmológicas realizadas neste ano.

O HSP, hospital universitário da Unifesp, atende oftalmologia de alta complexidade e realiza cirurgias avançadas, como implantes e transplantes de córnea. Com a redução de recursos causada pelos cortes orçamentários do MEC (Ministério da Educação) no início deste ano, somada às greves de funcionários e médicos residentes no primeiro semestre, o hospital passou a selecionar quem vai atender.

Os pacientes foram categorizados por nível de risco e só é operado quem tem mais chance de se recuperar. "A gente precisa escolher entre um paciente que tem uma chance de 10% de ficar bom, e um que tem 70% de chance", diz Paulo Schor, chefe de oftalmologia tanto do hospital como da Unifesp.

Desde o início do ano, o Ministério do Planejamento fez vários bloqueios ao orçamento de R$ 139 bilhões autorizados para o MEC. O maior corte ocorreu em maio, R$ 9,4 bilhões. No mês seguinte, o MEC anunciou redução de 47% do orçamento das universidades federais. Na Unifesp, o corte de R$ 25 milhões foi concentrado na verba para investimentos, projetos e obras.

O efeito desse corte chegou ao setor de oftalmologia da universidade, que decidiu reduzir em 40% as vagas de residência médica e em 30%, as de especialização para 2016. A projeção do departamento é que isto reduza em 30% o número de cirurgias.

Esse é o único departamento da área no país a receber conceito 7, a nota máxima da avaliação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Sua estrutura conta com cinco centros de pesquisa acadêmica, 35 setores de pesquisa clínica e 84 pós-graduandos.

Os centros de estudos de oftalmologia ficam no edifício de pesquisa, que possui mais de 30 laboratórios da área da saúde da Unifesp. O novo contrato de limpeza, feito em julho com a empresa Multiservice, não inclui a higienização de vidrarias e equipamentos específicos de laboratório.

Desde então, os estudantes é que estão responsáveis por higienizar os materiais de uso diário. Como a limpeza das salas e esterilização de utensílios deve ser cuidadosa, os alunos acabam perdendo tempo de trabalho em suas pesquisas, explica Schor.

Segundo o chefe de oftalmologia, os gastos em alguns setores são reduzidos para preservar outros mais importantes. No departamento, a prioridade é manter o nível de qualidade de quem permanece nos projetos, mesmo que para isso seja necessário reduzir a oferta de vagas e o uso de insumos. "Corta-se a mão para não perder o braço inteiro", diz Schor.

Na pós-graduação, os cortes e atrasos reduziram o ritmo de projetos, interromperam a importação de equipamentos e adiaram o início de pesquisas. "Se não houver novos aportes, seremos obrigados a parar projetos", afirma a Unifesp, por meio de sua assessoria de imprensa.

Outras consequências podem ocorrer a médio e longo prazo, como redução da formação de mestres e doutores, distanciamento das tecnologias de ponta, tornar a carreira de cientista pouco atrativa e evasão de estudantes para o exterior.

Segundo Schor, a conta de luz da Unifesp ficou atrasada quatro meses neste ano. Uma parcela foi paga em outubro com a verba de outras atividades. "Se cortar a energia deste prédio [edifício de pesquisa] por um ou dois dias, pesquisas de décadas serão perdidas", diz. De acordo com a Unifesp, o fluxo orçamentário e financeiro inconstante do governo federal ocasionou instabilidade no pagamento de algumas despesas.

É o que acontece no Centro Avançado de Superfície Ocular (Caso), onde o freezer armazena experimentos de dez anos a -80° C. Para que este e outros equipamentos funcionem corretamente, a temperatura da sala deve ser mantida em 20° C, mas o ar-condicionado está quebrado, deixando o ambiente a 25°C. "Já chegou a 30°. O laboratório superaquece e reduz a vida útil dos equipamentos", diz Priscila Cristovam, 36, aluna de pós-doutorado. De acordo com o professor José Álvaro Pereira Gomes, diretor do centro, o conserto de equipamentos está mais demorado neste ano.

No Caso, são estudadas alternativas para reconstrução da superfície ocular, além de análise de amostras dos pacientes do HSP. "Ciência é uma evolução constante. Se houver essa tendência de queda do investimento, a gente vai retroceder com certeza", diz Gomes.

Ainda segundo Schor, o HSP recebe doações, que são recebidas pela universidade e direcionadas ao hospital. Os congressos e cursos para profissionais especializados complementam a verba do departamento de oftalmologia.

Existe também a possibilidade de utilizar fontes alternativas de financiamento, como a realização de testes de pesquisas clínicas para empresas e financiamento coletivo. "O hospital e o centro de pesquisas estão em um momento muito preocupante, porque demoraram décadas para serem montados, e tememos que leve apenas anos para serem desmontados".

Em nota, o MEC afirma que, para se adequar ao ajuste, priorizou as despesas de custeio das universidades, e que foram preservados integralmente os limites de gastos em 2015 com hospitais universitários, assistência estudantil e residência médica. O Projeto de Lei Orçamentária para 2016, que definirá a verba do ministério, está em tramitação no Congresso Nacional.

GIULIANE GAVA e RENAN LOPES fizeram o 1º Programa de Treinamento em Fotojornalismo e Vídeo da Folha, patrocinado por Friboi, Odebrecht e Philip Morris Brasil.


Endereço da página:

Links no texto: