Folha de S. Paulo


'Amadora', Copa de 1950 acendeu paixão do Brasil pelo futebol

O ano é 1946. O mundo acabava de sair de sua guerra mais sangrenta e o Brasil tinha o primeiro governo democrático em oito anos. Brasília sequer havia sido desenhada e Maracanã era apenas o nome de um bairro na capital federal, o Rio de Janeiro. Não existia televisão, e o turfe --corrida de cavalos-- dominava o noticiário esportivo.

Difícil acreditar que esse se tornaria o país do futebol. Mas a escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo seria o pontapé inicial para as próximas seis décadas de obsessão futebolística.

A avaliação é de Beatriz Ferrugia e Murilo Ximenes, dois dos autores do livro "1950: O Preço de uma Copa", lançado neste mês pela Cia. das Letras.

"Toda a organização foi muito mais amadora do que é hoje. Naquela época, a Fifa pedia poucas reformas e a escolha das cidades-sede era menos criteriosa", diz Ferrugia. "No Nordeste, por exemplo, escolheu-se o Recife, sem nem visitar outras cidades da região."

Distante da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Brasil foi a melhor alternativa para abrigar a competição, suspensa desde 1938, conta o historiador Daniel Araújo, especialista na relação entre futebol e política.

Os países europeus, abalados pelo conflito, não tinham condições ou ânimo para sediar um grande evento esportivo. Várias seleções faltaram, o que, para Araújo, "esvaziou um pouco a Copa".

A França, por exemplo, cancelou sua participação após ver o cronograma de jogos, que incluía uma partida no Recife logo após um jogo em Porto Alegre, a 3.500 km de distância.

Os franceses consideraram a viagem longa e desgastante demais e desistiram 19 dias antes de sua estreia no Mundial, de acordo com o jornal francês "L'Équipe".

Já a Argentina teria se sentido preterida pela escolha do Brasil como sede, não comparecendo ao torneio.

No total, competiram somente 13 seleções, três a menos do que na Copa anterior. Em 2014, serão 32 equipes.

As ausências favoreceram equipes como a do Uruguai, que se classificou para a final ganhando apenas uma partida --contra a Bolívia por 8 a 0.

Apesar disso, o Mundial de 50 atiçou o gosto dos brasileiros por futebol. "No mês da Copa, os jornais começaram a noticiar mais o esporte, falando, por exemplo, da estreia do estádio, da chegada das seleções às cidades", conta Ferrugia.

Nesse clima, a final entre Brasil e Uruguai reuniu no Maracanã o maior número de espectadores em um jogo de futebol até hoje: 173.850 pessoas, oficialmente, fora as milhares que assistiram à partida do entorno.

A perda do título para os uruguaios, com um placar de 2 a 1, eternizou-se como o "maracanazo", uma das maiores frustações do futebol nacional.

"Não que seja legal perder, mas o resultado foi tão traumático que fez com que se começasse a falar mais sobre o futebol. Talvez, se o Brasil tivesse ganho aquela Copa, não se teria falado tanto", afirma Ximenes.

POLÍTICA

Como acontecerá em 2014, a Copa de 1950 foi em ano de eleição. Os eventos estavam tão interligados que até o técnico da seleção brasileira, o carioca Flávio Costa, era candidato a deputado federal, conta o historiador. Após a derrota no gramado, foi também derrotado nas urnas.

O ônus político da Copa também afetou a corrida presidencial. "A decepção brasileira vai ser creditada ao [então presidente] Dutra. Cresce o coro de 'queremos Vargas'", diz Araújo.

O rádio era o único veículo que transmitia os jogos ao vivo. Por meio dele, os brasileiros acompanhavam não só o esporte mas também a vida política, agitada naquele ano pela campanha eleitoral que devolveria o ex-presidente Getúlio Vargas ao poder, em outubro.

MARACANÃ

A um ano da Copa, o Rio ainda não tinha um estádio de futebol de grande porte. Após descartar vários projetos, o governo optou por construir uma arena central, acessível à população e com capacidade para mais de cem mil torcedores.

Nascia o Maracanã, o maior estádio do mundo, no lugar do Derby Club, antigo hipódromo da cidade.

A obra estaria "ligada a uma ideologia de desenvolver o Brasil, um país com potencial", afirma Ferrugia. Construir o Maracanã era "fazer história", diz.

Para Araújo, a construção trazia elementos do discurso trabalhista de Vargas. "O trabalhador se sentia incluído, pois construir o estádio era contribuir para o progresso do Brasil".

Inaugurada a uma semana da Copa, a arena custou pelo menos Cr$ 150 milhões (cerca de R$ 142,5 milhões) e não estava totalmente pronta, segundo os autores.

"O estádio abriu cercado de lama, com cobertura e paredes sustentadas por andaimes de madeira", conta Ximenes.

Apesar do improviso inicial, 50 anos depois, o Maracanã se tornaria patrimônio histórico do país. Em 2010, no entanto, foi parcialmente implodido, perdendo sua famosa marquise para uma reforma que já custou R$ 1,2 bilhão ao governo do Rio.

Reaberto em 27 de abril, o Maracanã foi adaptado aos parâmetros de segurança da Fifa, que restringiram sua capacidade. Hoje, comporta 78 mil pessoas, atrás de arenas como Wembley, na Inglaterra, e Camp Nou, na Espanha.

Mesmo perdendo o posto de maior do planeta, o estádio chegará a 2014 como símbolo de um Brasil, enfim, apaixonado por futebol.


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