Folha de S. Paulo


Antigo espaço de debate político no país, hoje futebol operário é restrito a lazer

No final da década de 1970 e no início dos anos 1980, as greves gerais do ABC paulista marcaram o começo da abertura política pós-ditadura militar no Brasil e a fundação do PT.

As articulações desses movimentos, no entanto, não aconteciam apenas dentro das fábricas automobilísticas, cerne da indústria local. Era no intervalo das peladas, aos finais de semana, que os operários discutiam insatisfações da categoria.

A Volkswagen, a Chrysler, a Ford e a Mercedes-Benz, em São Bernardo, na Grande São Paulo, tinham seus próprios times, assim como o sindicato dos metalúrgicos, e organizavam partidas em campos municipais ou nos clubes das empresas.

Expedito Soares Batistas, 60, era membro do sindicato em 1970 e lembra da descontração como uma marca dos campeonatos. Depois das partidas, entre uma cerveja e outra, as aspirações políticas eram o assunto da conversa.

"Conversávamos sobre a ditadura militar, o sindicalismo pelego e a projeção nacional que o MDB [Movimento Democrático Brasileiro] ganhava. O bipartidarismo precisava mudar; queríamos votar em nosso próprio partido. Podemos dizer que o embrião do PT começou a ser gestado ali", diz.

Jair Meneguelli, atual presidente nacional do Sesi, seguia uma rotina semelhante em 1977. À época, era um dos 150 membros da ferramentaria da Ford e escapou de uma demissão massiva no setor. Dias mais tarde, nos gramados, descobriu por meio dos operários demitidos que a Ford era a montadora que menos pagava. "Pegamos o holerite dos colegas, tiramos xerox e pedimos justificativas dos recursos humanos", afirma Meneguelli.

"Esses encontros nos campos de futebol possibilitavam uma troca de informações. Depois da greve de 1977 [que paralisou os 12 mil funcionários da Ford e resultou em um aumento salarial de 11%], o sindicato ia para as portas da fábrica e o diálogo não se dava mais a partir do esporte. Os campos passaram a servir para trocarmos impressões das orientações dadas pelo sindicato", conta.

DAS FÁBRICAS PARA OS GRAMADOS

Nos jogos do sindicato dos metalúrgicos, Expedito fazia parte da equipe dos solteiros, no clássico solteiros contra casados. Entre os 11 jogadores, o ex-presidente Lula atuava na posição de centroavante. Nelson Campanholo, 74, que também era do time, afirma que as fábricas contratavam ex-profissionais como reforços. "Os próprios funcionários se articulavam para que um jogador aposentado fosse empregado", diz.

1969/Arquivo pessoal
Equipe dos solteiros antes de partida organizada por membros do sindicado dos metalúrgicos. Em 1969, o ex-presidente Lula (no centro, abaixo) era um dos integrantes do time.
Equipe dos solteiros antes de partida organizada por membros do sindicado dos metalúrgicos. Em 1969, o ex-presidente Lula (no centro, abaixo) era um dos integrantes do time.

A pesquisadora do Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes explica que o profissionalismo não tinha as características de hoje. "Times de primeira linha com salários astronômicos não existiam."

De acordo com ela, alguns jogadores assumiam funções mais leves, trabalhando menos de oito horas diárias, para dedicar o tempo restante a treinos e campeonatos amadores.

As Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo --um complexo de fábricas-- são um exemplo disso, tendo empregado Bibe, que atuou no São Paulo e na Ponte Preta, entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960.

O caminho inverso também era recorrente. Tanto Campanholo quanto Antunes lembram que operários talentosos com a bola foram encaminhados a clubes profissionais. Campanholo conta que chegou a empresariar um funcionário. Outro caso é o de Gino Orlando, que começou carreira na Associação Atlética Matarazzo e, em 1950, foi para a categoria de base do Palmeiras.

HOJE

Se antes o futebol nas fábricas era uma fonte de talentos para o futebol profissional e um espaço de debate político, hoje ele está restrito ao lazer dos funcionários.

Das montadoras citadas nesta reportagem, apenas a Mercedes-Benz ainda organiza competições. A montadora mantém um clube próximo à fábrica com 7.000 associados entre funcionários e antigos trabalhadores. De acordo com o presidente da Associação Desportiva Classista Mercedes-Benz, Paulo César Santos, 46, os operários saem em diferentes horários, por isso o clube está sempre cheio mesmo à noite.

"Os diferentes campeonatos acontecem ao longo de todo o ano e abrangem 2.500 pessoas divididas em mais de 160 times. A categoria Master, por exemplo, é acima de 60 anos. Envolve diversas gerações."

Há quatro anos consecutivos, a montadora é vencedora no campeonato de futebol dos Jogos do Sesi. A competição, criada em 1947 com o nome Jogos Desportivos Operários, reúne hoje mais de 1.500 indústrias no Estado de São Paulo e é um dos principais centralizadores do esporte de fábrica do país.

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Este texto faz parte do especial "Brasil - Terra do Futebol", projeto final da 55ª turma do Programa de Treinamento em Jornalismo Diário da Folha, que tem patrocínio da Odebrecht, da Philip Morris e da Ambev.


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