Folha de S. Paulo


Futuro da indústria automobilística está sendo testado em lugar secreto

Laura McDermott/The New York Times
FILE -- An intersection with traffic lights in MCity, a testing environment for driverless vehicles, in Ann Arbor, Mich., Aug. 5, 2015. Mcity is one of a half-dozen or so testing grounds for autonomous vehicles in the world as automakers and technology companies engage in a heated competition to create the perfect self-driving car. (Laura McDermott/The New York Times)
Vista do ambiente de teste para carros-autônomos, a MCity, próximo a Detroit nos EUA

Aqui em Ann Arbor, uma cidade universitária 65 quilômetros a oeste de Detroit, por trás de painéis pretos afixados a uma cerca metálica de 2,5 metros de altura, o futuro da indústria automobilística está sendo determinado em um ambiente secreto.

A cerca protege um centro de testes chamado Mcity —uma área de 13 hectares montada para replicar uma cidade qualquer dos Estados Unidos, com ruas e cruzamentos simulados. Dentro da área existem 13 tipos diferentes de semáforos, fachadas de lojas, sinais de trânsito, parquímetros e um túnel. Em breve, será criada uma interseção ferroviária.

O Mcity é um dos cerca de meia dúzia de campos de teste para veículos autoguiados em atividade no planeta, agora que as montadoras de automóveis e companhias de tecnologia estão envolvidas em uma quente disputa pela criação e aperfeiçoamento do carro autoguiado perfeito —e para impedir que os concorrentes saibam exatamente como isso está sendo realizado.

Mas embora tenham conquistado grandes avanços nas tecnologias que permitem que carros encontrem seu caminho sem ajuda humana, essas empresas agora enfrentam um desafio ainda mais complexo: como tomar essa tecnologia, altamente promissora, e fazer com que carros apresentem desempenho impecável em um mundo imprevisível.

Tanto as montadoras de automóveis quanto as autoridades regulatórias têm décadas de experiência quanto a tornar veículos mais seguros em colisões, mas meios e métodos de validar a confiabilidade e a segurança dos carros autoguiados ainda não foram inventados.

"Quando já não há um ser humano cuidando das tarefas sensórias e decisórias, o carro precisa ser impecável", disse John Maddox, diretor assistente do Centro de Transformação da Mobilidade, na Universidade do Michigan.

Fabrizio Costantini/The New York Times
Part of an old auto factory on a 335 acre site, once a famed bomber factory in World War II and then G.M.'s former Willow Run plant, in Ypsilanti, Mich., May 16, 2016. The University of Michigan is a partner with automakers in a project to develop the site, to be called the American Center for Mobility, for testing autonomous cars at highway speeds, and in more complex situations. (Fabrizio Costantini/The New York Times)
Centro de testes em Ypsilanti (EUA), o "American Center for Mobility"

Os executivos do Mcity citam as empresas que usam o centro —Ford, General Motors, Honda, Toyota, Nissan e os fabricantes de autopeças Bosch e Delphi, entre outro poucos—, mas não acrescentam muitos outros detalhes. Demonstrações, para o público ou a mídia, são raras.

Afinal, o Mcity é um lugar que funciona por tentativa e erro, distante do olhar do público, em uma indústria na qual erros podem destruir reputações.

Em uma recente tarde ensolarada, uma lacuna nos painéis de proteção permitia ver um sedã Lincoln MKZ preto, com sensores montados na capota e dois engenheiros ocupando os assentos da frente. O carro estava avançando cautelosamente na direção de um cruzamento, e logo freou, antes de fazer uma conversão à direita, usando o pisca-pisca, é claro. O carro preto depois seguiu seu caminho pelo centro artificial de uma cidade.

Momentos mais tarde, um Lincoln MSK branco passou em linha reta a cerca de 40 km/h, e fez uma curva aberta para a esquerda, atravessando a área central da cidade. Mais tarde, os dois carros pararam lado a lado sob uma placa de trânsito verde, que sinalizava uma saída inexistente para a rodovia I-96, na direção de Lansing. Lá, os ocupantes saíram para examinar os sensores montados sobre as capotas. Depois de uma longa pausa, os dois carros repetiram o mesmo percurso, de modo lento e deliberado —muito mais devagar do que os carros que percorrem as vias públicas em torno do centro de teste.

O teste está sendo conduzido com o maior cuidado porque o número de desafios imprevistos que surgem nas ruas é quase ilimitado —um galho de árvore caído, uma rua de superfície congelada, motoristas imprudentes, uma criança pequena atravessando a pista.

"Existem questões verdadeiras e significativas sobre a segurança das novas tecnologias", disse Mark Rosenkind, administrador da Administração Nacional de Segurança do Tráfego Rodoviário dos Estados Unidos, em uma reunião na Califórnia em 27 de abril. "O velho modelo de contar a quilometragem percorrida e o número de acidentes e lesões não é suficiente".

Este mês, a agência de segurança rodoviária norte-americana, que tem autoridade limitada para regulamentar a prática de testes com veículos autoguiados em vias públicas, ofereceu aprovação cautelosa a diversas empresas para o início de testes em vias públicas.

Mas o setor não está parado esperando.

Fabrizio Costantini/The New York Times
Old streets on a 335 acre site, once a famed bomber factory in World War II and then G.M.'s former Willow Run plant, in Ypsilanti, Mich., May 16, 2016. The University of Michigan is a partner with automakers in a project to develop the site, to be called the American Center for Mobility, for testing autonomous cars at highway speeds, and in more complex situations. (Fabrizio Costantini/The New York Times)
Centro de testes em Ypsilanti (EUA), o "American Center for Mobility"

Além do complexo Mcity, a Universidade de Michigan é parceira de um projeto para um centro de testes muito maior a cerca de 16 quilômetros de distância, na vizinha cidade de Ypsilanti. O complexo levará o nome American Center for Mobility e abarcará 135 hectares que no passado eram parte da fábrica da GM em Willow Run, que durante a Segunda Guerra Mundial foi uma famosa linha de montagem de bombardeiros. Maddox foi apontado para dirigir o projeto.

Ao contrário do Mcity, o novo complexo, de maior porte, terá trechos longos nos quais os carros autoguiados poderão ser testados em velocidade real de uso, e com uma variedade de cruzamentos complexos. As vias já existentes no local incluem pontes e viadutos.

A Ford tem interesse em usar a nova instalação em Willow Run, disse Randy Visintainer, diretor de desenvolvimento de veículos autoguiados na Ford. "É algo que provavelmente teríamos de criar, caso não existisse", ele disse.

Na Califórnia, uma antiga base militar foi transformada em campo de teste de 840 hectares, com o nome de GoMentum Station, e é lá que a Honda vem testando sua tecnologia para carros autoguiados. O local conta com cerca de 32 quilômetros de estradas pavimentadas e edificações que podem oferecer um ambiente urbano. Também é um local seguro no qual as montadoras podem testar carros sigilosamente.

Perto de Blacksburg, na Virgínia, a Universidade Virginia Tech criou um campo de testes que incorpora uma porção fechada e trechos de vias públicas.

O desafio, segundo o que dizem todos os envolvidos, é imenso.

Este ano, um executivo da Apple refletiu sobre o quanto seria difícil para um carro sem motorista distinguir entre um carrinho de supermercado e um carrinho de bebê. A Delphi reportou que os sistemas em que está trabalhando às vezes enfrentam dificuldades para ler semáforos. O problema? O brilho do pôr do sol.

"A realidade é que ter um carro de quase duas toneladas no mesmo espaço que uma pessoa de 90 quilos exige saber que o veículo reagirá da maneira desejada em todas as ocasiões", disse Maddox. "E a validação disso vai exigir muitos testes".

A pista de testes de Willow Run deve contar com um centro de engenharia, no qual Maddox espera que as montadoras e as autoridades regulatórias trabalhem juntas para desenvolver novos métodos de teste.

Até agora, a maioria dos testes de veículos autoguiados aconteceram em vias públicas.

O Google afirma que seus carros já dirigiram quase 2,5 milhões de quilômetros nos testes que a empresa conduz perto de sua sede em Mountain View, Califórnia. Nos últimos meses, a empresa expandiu seu programa de testes a Kirkland, no Estado de Washington; Austin, Texas; e Phoenix, Arizona. Todas as demais empresas acumularam quilometragem de testes muito menor.

Maddox suspeita que isso seja apenas uma pequena fração dos testes que precisarão ser realizados. Em média, ele aponta, acontece um acidente fatal a cada 160 milhões de quilômetros dirigidos nas vias norte-americanas. "Ainda estamos bem distantes de ter a experiência necessária".

Um estudo recente da RAND concluiu que os veículos autoguiados podem ter de ser testados durante centenas de milhões, ou mesmo bilhões, de quilômetros para propiciar um grau de certeza estatisticamente suficiente.

Além disso, os testes de rua muitas vezes ficam aquém do necessário. Se um carro autoguiado não reage corretamente no mundo real —se, por exemplo, a sombra de um edifício o leva a frear repentinamente —a situação não pode ser recriada e repetida para identificar a questão e ajustar os sensores do carro, disse Huei Peng, professor de engenharia e diretor do Centro de Transformação da Mobilidade da Universidade do Michigan.

"Temos de ver como esses veículos interagem com aquilo que os cerca e necessitamos de testes confiáveis e repetíveis, para isso", ele disse.

E colisões ocorrem. Os carros do Google, até setembro do ano passado, registravam 16 colisões, todas por erro humano, informou a empresa então. Em relatório às autoridades regulatórias da Califórnia, o Google revelou que motoristas humanos tiveram de assumir o controle de seus carros de teste em 341 ocasiões, em um período de 14 meses em 2014 e 2015, o que inclui 13 incidentes nos quais o carro teria colidido sem a intervenção do motorista.

O Google e a Fiat Chrysler estão trabalhando juntos para testar uma frota de 100 minivans autoguiadas nas vias do Michigan e outros Estados, até o final deste ano. O Google está criando um centro de engenharia em Novi, Michigan, para equipar as minivans com tecnologia de direção autônoma.

No mesmo período, a Ford planeja expandir sua frota para 30 protótipos autoguiados, ante os atuais 10. A GM e sua parceira, a Lyft, operadora de serviços online de carros, esperam ter uma frota de táxis sem motorista pronta para testes em um ano.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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