Folha de S. Paulo


A dolorosa lição de matemática que o fiasco da Nokia ensinou à Microsoft

Podemos chamar o acontecido de uma lição de US$ 7,5 bilhões.

É essa a quantia que a Microsoft contabilizou como prejuízo com a unidade de fabricação de celulares da Nokia, que ela adquiriu pouco mais de um ano atrás pelo total, segundo a companhia, de US$ 9,5 bilhões.

Considerando que a transação incluía US$ 1,5 bilhão em reservas de caixa, a quantia contabilizada como prejuízo significa que a Microsoft hoje avalia uma empresa que um dia controlou 41% do mercado mundial de celulares em apenas uma pequena fração do valor de compra.

Graças em parte a essa imensa provisão contábil, a Microsoft na semana passada reportou o maior prejuízo trimestral de sua história (US$ 3,2 bilhões). Foi apenas o terceiro prejuízo trimestral sofrido pela empresa desde que esta abriu seu capital.

"Se você estivesse falando sobre qualquer outro setor, isso seria uma catástrofe da ordem de um desastre natural", disse Horace Dediu, que trabalhou para a Nokia durante oito anos no apogeu da empresa e agora trabalha para o Clayton Christensen Institute, um grupo de pesquisa de San Francisco que estuda tecnologias inovadoras.

Mas porque ela opera no setor de tecnologia, o presidente-executivo da Microsoft, Satya Nadella, que tem relativamente pouco tempo no posto, recebeu crédito por aceitar rapidamente a realidade e assumir o prejuízo. Isso pode ter sido mais fácil se considerarmos que Nadella se opôs à proposta de aquisição na consulta inicial aos principais executivos da Microsoft. Mas Steve Ballmer, seu predecessor, estava determinado a fechar o negócio, para coroar seu longo período como presidente-executivo. Mesmo depois que a aquisição passou por uma revisão e Nadella divulgou um comunicado expressando apoio público a ela, dois integrantes do conselho da Microsoft votaram contra o negócio. Os dois deixaram seus postos no conselho, depois disso.

Frank Shaw, porta-voz da Microsoft, disse que era normal existir debate interno sobre grandes aquisições. Mas é raro que haja dissidência aberta no conselho quando os termos finais de uma transação são definidos.

A Microsoft está em boa companhia, além disso. O Google abandonou sua incursão ao ramo de smartphones ao vender a Motorola Mobility ao grupo Lenovo no ano passado. Mas contabilizou como prejuízo apenas US$ 378 milhões, ante um valor de aquisição de US$ 12,5 bilhões para a Motorola. A Amazon contabilizou ainda mais modestos US$ 170 milhões em prejuízos em outubro, admitindo que seu celular Fire foi um fracasso.

"Tentamos aprender com tudo que fazemos, ao lançarmos novas oportunidades", disse Thomas Szkutak, vice-presidente de finanças da Amazon, então, invocando a típica referência a "aprendizado" que as companhias de tecnologia em geral empregam para rotular seus fracassos.

Mas a Microsoft tinha muito mais em jogo do que o Google ou a Amazon, porque o principal motivo da aquisição da Nokia era sustentar a posição do sistema operacional Windows nos aparelhos móveis, e a posição deste, por sua vez, era crucial na nova estratégia da empresa de priorizar os aparelhos móveis.

Agora, os sistemas operacionais para aparelhos portáteis e o hardware do segmento se tornaram na prática dois duopólios mundiais, com Apple e Google dominando o software e Apple e Samsung dominando o hardware. A Microsoft abandonou sua estratégia para os aparelhos móveis.

O "grande esquema" da Microsoft era "ter uma plataforma única que pudesse acionar computadores, tablets e celulares, e com isso ganhar a capacidade de vender aplicativos que operem com o Windows", disse Nicholas Economides, professor de Economia na Escola Stern de Administração de Empresas, Universidade de Nova York, e especialista em economia de redes e comércio eletrônico. "A ideia fracassou".

Dediu disse que era difícil atribuir toda a culpa à Microsoft, porque tantas outras empresas haviam fracassado do mesmo jeito. "A maioria das pessoas não acredita que tamanha catástrofe possa ocorrer tão rápido", ele disse. A Microsoft "não era capaz de imaginar que uma companhia um dia tão forte e dominante quanto a Nokia viesse a ter valor virtualmente zero".

Ele comparou a rápida ascensão da Apple e a decadência na posição da Nokia, BlackBerry e outras fabricantes um dia prósperas à chegada de um vírus infeccioso. "Tendemos a pensar que os fortes sobreviverão", disse Dediu. "Mas um vírus é uma coisa pequenina que mata coisas grandes".

Ele prosseguiu dizendo que "é fácil dizer que a Microsoft foi tola, e culpar seu presidente-executivo. Mas quando uma coisa assim acontece a todos, o que temos é um evento de extinção. Diversas empresas se viram desalojadas pela inovação no mercado. E isso aconteceu em um piscar de olhos".

Mesmo assim, US$ 7,5 bilhões é um preço bem salgado a pagar por uma lição. Quando perguntei à Microsoft o que ela havia recebido por seu dinheiro, o porta-voz da empresa, Shaw, concordou em que a velocidade das mudanças no setor havia apanhado a companhia de surpresa. "Tudo sempre parece diferente quando visto em retrospecto", ele disse.

A Microsoft agora iniciou o que Nadella define como nada menos que uma "reinvenção" da companhia. Em e-mail aos funcionários este mês explicando a mudança, Nadella disse que "estamos trocando a estratégia de criar um negócio separado de celulares por uma estratégia de criar e expandir um ecossistema vibrante para o Windows".

Shaw enfatizou que a empresa continuaria a fabricar celulares Windows e outros produtos, e que introduziria uma nova linha de celulares Lumia no final do ano. Mas eles serão produtos diferenciados, adaptados a segmentos de mercado mais estreitos, como por exemplo clientes empresariais preocupados com a segurança.

"Uma coisa que aprendemos é que se oferecermos produtos diferenciados que se concentrem nas coisas que fazemos melhor, esses produtos se sairão bem", disse Shaw. "Em lugar de pensar só em como fazer nossos produtos funcionarem em nossos celulares, estamos pensando sobre como chegar às pessoas, não importa que aparelho elas usem. Nosso objetivo é trazê-las para casa, no Windows, onde elas terão uma experiência melhor e diferenciada".

Talvez o mais importante, Shaw disse que a Microsoft reconhecia a necessidade premente de inovar. "Se você perdeu a primeira onda, é preciso persistir e iniciar ou antecipar a próxima onda. Queremos ser parte da próxima onda de inovação".

É claro que dizer é muito mais fácil do que fazer, nesse caso, especialmente porque a próxima onda talvez já tenha chegado.

A Apple conseguiu grande impacto com o Apple Watch, que a companhia diz ter excedido suas expectativas de venda.

A Microsoft lançou um produto vestível de computação, a Microsoft Band, no ano passado, meses antes da Apple. O produto oferece alguns dos mesmos recursos do Apple Watch, a preço mais baixo. Opera com múltiplos sistemas operacionais, ao contrário do Apple Watch, que só opera com o iOS. Embora não tenha sido sucesso absoluto junto aos resenhistas de tecnologia (como tampouco o Apple Watch), a Microsoft Band teve críticas positivas.

A companhia ainda não divulgou números de vendas, mas o produto mal parece ter sido registrado na consciência dos consumidores. O look do aparelho é o de uma desajeitada pulseira de fitness, e não o de um elegante relógio fino. O Apple Watch, em contraste, já se tornou símbolo de status e acessório de moda instantaneamente reconhecido.

A Microsoft diz que jamais posicionou a Microsoft Band como relógio, e que por isso o produto não deveria ser comparado ao Apple Watch. Mas porque o Apple Watch também serve como acessório de fitness, será que a Microsoft já perdeu a nova onda, a transição do bolso para o pulso?

"A questão é válida", disse Dediu. "Não é automático que o sucesso em uma plataforma seja transferido a outra. Para sobreviver em longo prazo nesse ramo, é preciso criar uma categoria nova ou ser um seguidor rápido". Ele comparou a Microsoft à IBM, outra gigante da tecnologia "que parece estar em um lento declínio, que possivelmente nunca será revertido".

Retornando à sua analogia biológica, ele disse: "Você é uma grande espécie e pega um vírus. O que pode fazer? A culpa na verdade não é sua. Mas você não é imortal".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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