Folha de S. Paulo


Relatório prevê futuro "sombrio" para a internet

Fazer previsões é complicado. O futuro chega até nós em alta velocidade hoje em dia, e há muitas variáveis para que sejam feitas afirmações precisas. Previsões, porém, podem ser úteis: são uma excelente maneira de examinar as paixões do momento.

O Pew Research Center, uma das mais conhecidas organizações de produção de conhecimento estratégico, publicou recentemente o terceiro volume de uma série batizada de "A Vida Digital em 2025". Ainda que visto como um retrato dos dias atuais, e não dos que estão por vir, o relatório, chamado "Ameaças à Rede", é sombrio.

O Pew Internet Project, em colaboração com o Centro para a Imaginação da Internet da Universidade Elon, entrevistou 1.400 importantes pensadores de tecnologia.

Coletivamente, os especialistas postularam que acontecerão novas violações das liberdades on-line por governos; que haverá mais monitoramento e uma queda da confiança; ocorrerá um "esmagamento" da criatividade individual por causa do controle de grandes companhias.

Existem perigos originados até na personalização de conteúdo: essa personalização, uma maneira de limitar a sobrecarga de informação, também foi vista como uma ameaça às descobertas que fazemos por acaso com o que lemos, assistimos e pensamos.

"Perguntamos sobre as ameaças e oportunidades para o conteúdo livre na internet, e recebemos respostas elaboradas", disse Lee Rainie, diretor do Pew Internet Project e coautor do estudo. Comparado com o passado, disse ele, "há uma sensação mais palpável de temor" em relação à vida on-line.

Essa visão problemática surgiu quando o grupo, cujos membros eram em boa parte otimista no início, recebeu pedido para descrever "as ameaças mais sérias ao acesso, ao compartilhamento e ao conteúdo na internet".

Não é surpreendente, então, que a palavra "ameaça" apareça 57 vezes no relatório, enquanto "esperança" e variáveis surjam só 12 vezes. "Corporativa" e "corporação" aparecem 31 vezes –apenas uma delas de forma positiva.

Anteriormente, um grupo de especialistas consultados pelo Pew havia previsto os efeitos de uma internet onipresente, enquanto outra pesquisa observava as implicações da chamada internet das coisas. De forma geral, eram projeções positivas.

Então, quão assustados deveríamos estar com o mundo que está por vir? A época em que o relatório foi produzido ajuda a entender. As perguntas foram feitas on-line entre novembro e janeiro, quando as revelações de Edward Snowden de espionagem da NSA contra cidadãos comuns dominaram o noticiário de tecnologia, o que, segundo Rainie, afetou os palpites das pessoas. "Definitivamente, esse é um ambiente pós-Snowden", diz ele.

Sobre os medos de que companhias famintas por lucros irão limitar o acesso ou explorar o nosso lado preguiçoso, Rainie observou que "há uma preocupação crônica sobre a comercialização de tudo on-line".

Claramente, as revelações de Snowden são importantes para como pensamos a respeito da internet, embora a descoberta de que a NSA espia a vida on-line pareça não ter mudado muito o comportamento das pessoas. Há também outras maneiras sobre como os especialistas poderiam ter pensado a respeito do futuro do conteúdo na rede. A maioria dos especialistas do Pew se identificou como norte-americana.

Eles parecem ter implicitamente definido "conteúdo" como algo pessoal e criado por humanos, valorizando a liberdade de expressão e a diferença. Embora louvável, para alguns críticos essa perspectiva pode já conter um certo tipo de parcialidade do presente. "Passei um tempo nos Emirados Árabes Unidos, e as pessoas de lá poderiam dizer que essa tal de 'internet livre' é um tipo de oligopólio subsidiado vindo do imperialismo cultural ocidental" disse Steven Weber, professor na Escola de Informação da Universidade da Califórnia em Berkeley.

Um ponto sobre o qual os especialistas do Pew e os árabes poderiam concordar, observa ele, é que "eles também acham que a internet é um lugar onde a NSA espiona você". Para Weber, "'O mundo está ficando menos livre e criativo?' é uma retórica exagerada que eu ouvi dos mesmos 'especialistas' da década passada".

Tão importante quanto isso são as mudanças na internet e no conteúdo que não foram citadas. Os especialistas parecem pensar que a internet é um lugar aonde as pessoas vão, ou algo que visitam periodicamente. Cada vez mais, esse parece ser menos o caso –algumas pessoas checam seus smartphones até 150 vezes ao dia, segundo a analista de internet Mary Meeker, mas não é só por isso.

Os dispositivos com dados de localização, os vestíveis (como monitores de saúde que enviam informações à "nuvem"), e um mundo cheio de sensores significam que os hábitos da internet se espalharam por todo o mundo.

Logo, quase toda atividade humana e a internet serão inextricáveis. Meu batimento cardíaco, conectado a um monitor de saúde na nuvem, é conteúdo que funde o homem e máquina. O vídeo ao qual assisto é conteúdo, mas também é onde e por quanto tempo eu o assisti, e o que fiz em seguida.

Claro, esse está longe de ser o tipo de conteúdo e mundo ao qual os especialistas se referiam ao instituto Pew. Isso é compreensível e o porquê de fazer previsões é uma tarefa sobre o presente: A coisa mais difícil de imaginar sobre o futuro é que não estamos nele de alguma forma que nos reconhecemos.

Tradução de BRUNO ROMANI


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