Folha de S. Paulo


EUA dizem manter apoio à neutralidade da rede apesar de polêmica no NETMundial

A delegação americana na NETMundial afirmou que os Estados Unidos, apesar de terem defendido que a conferência não abordasse neutralidade da rede em seu documento final, ontem, mantêm seu apoio ao mecanismo.

"Seria um erro interpretar que não apoiamos o princípio da equidade em termos de tráfego na internet", diz Michael Daniel, coordenador de Segurança Cibernética da Casa Branca e chefe da delegação.

Lawrence Strickling, secretário-assistente de Comércio dos EUA e membro da delegação, justificou que neutralidade "significa coisas diferentes em partes diferentes do mundo" e é preciso tempo para obter "linguagem de consenso".

Sobre as relações dos EUA com o Brasil, Daniel respondeu ver "incrivelmente positivamente" o apoio dado pelo governo brasileiro e pela NETMundial à abordagem multissetorial para a governança da internet.

Quanto à recém-anunciada visita do vice-presidente Joe Biden ao Brasil em junho, para a Copa, disse que a Casa Branca aguarda a visita com interesse, "como um passo para continuar na construção da relação estratégica".

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Folha - Por que os Estados Unidos não queriam a neutralidade da rede [net neutrality] discutida aqui [na NETMundial]? Neutralidade, pelo menos a palavra, não está no documento final. O sr. vê isso como um resultado positivo?
Michael Daniel - Eu penso que seria um erro interpretar que nós não apoiamos o princípio da equidade em termos de tráfego na internet. A questão, da nossa perspectiva e principalmente da perspectiva da indústria americana, é que o termo "neutralidade da rede" e a forma como foi caracterizado originalmente carregam certas conotações e estruturas técnicas com as quais não concordamos, necessariamente. E eu penso que a nossa questão era que não havia consenso o bastante em torno da estrutura como um todo, para ter uma articulação completa no documento final, aqui. Mas isso não deve ser confundido com o governo dos EUA não apoiando a ideia de, digamos, um tratamento equânime de tráfego na internet. Você gostaria de acrescentar?

Lawrence Strickling - Eu diria até com mais força. O governo Obama sempre apoiou a neutralidade da rede. Isso não mudou. Eu penso que se viu hoje foi que ela significa coisas diferentes em partes diferentes do mundo. A ideia de, em dois dias, tentar alcançar uma linguagem de consenso para pôr num documento era, eu penso, improvável de acontecer. É uma questão em que a norma internacional ainda está se desenvolvendo.

Folha - Inclusive nos Estados Unidos, com a proposta da FCC [Federal Communications Commission, noticiada no "Wall Street Journal"]?

Strickling - Sim, ainda nos EUA. Porque atravessamos já dois ou três processos judiciais em que a FCC foi instruída a voltar e continuar a refinar sua posição. Portanto, eu penso que a ideia é que será importante ajudar a norma internacional a crescer e se desenvolver, mas não seremos capazes de fazê-lo concordando sobre linguagem aqui, ontem e hoje. Então, o que dissemos foi: Vamos identificar como uma questão, dizer que precisa ser discutida. Propusemos talvez dedicar um tempo na reunião do IGF [Internet Governance Forum, em setembro] na Turquia, onde você pode gastar um dia inteiro só nessa única questão, como um bom próximo passo, como parte da discussão internacional.

Mas é uma questão em que, mesmo tendo diferentes concepções de neutralidade da rede em diferentes países, em diferentes partes do mundo, a internet funciona bem. Portanto, essa é uma dessas áreas em que estamos realmente falando em desenvolver uma norma ou um padrão internacional sobre o que significa e como fazer. É algo em que gostaríamos de ver o processo multissetorial tomar seu tempo para avançar e desenvolver mais as nuanças e complexidades da questão.

Folha - O que a presidente Dilma Rousseff falou ontem e todo o apoio que o Brasil, através do evento, deu à abordagem multissetorial para a governança da internet foram vistos, por alguns, como uma bandeira branca do Brasil para os EUA. Você vê isso positivamente? O que pode representar para o futuro das relações bilaterais?

Daniel - Eu vejo isso incrivelmente positivamente. Uma das razões por que a delegação dos EUA aqui é tão substancial é porque apoiamos muito fortemente os conceitos por trás da NETMundial. Ficamos muito satisfeitos com a maneira como a conferência transcorreu, nos últimos dois dias, e como foi forte o apoio a esse sistema multissetorial e à abordagem multissetorial à internet. Da nossa perspectiva, foi um desenvolvimento muito, muito positivo. Essa é uma das razões por que apoiar isso tão fortemente.

Strickling - Eu queria dizer que foi uma grande oportunidade para o Brasil mostrar para o resto do mundo a liderança que ele tem nessa área. Brasil tem sido como um ajustador de passo no processo multissetorial, com o CGI (Comitê Gestor da Internet] aqui, com o Marco Civil. E eu acho que foi ótimo que eles tenham conseguido subir aqui no palco mundial e ter o resto do mundo reconhecer o país por todo o trabalho feito.

Folha - Ainda assim, a abordagem brasileira para a governança da internet, pelo que ouvi de Virgílio Almeida [presidente da NETMundial e coordenador do CGI] e outros, é um pouco diferente. Ela também inclui governos, o que não é, supostamente, a posição americana.

Daniel - Não está exatamente certo.

Strickling - Não é verdade. A posição dos EUA sempre foi que os governos são partes interessadas e que devem participar dos processos, mas não tomar a decisão no fim e não ter mais votos que os outros. Em outras palavras, são partes interessadas como quaisquer pessoas do setor empresarial ou da sociedade civil. Para ter um verdadeiro processo multissetorial, eles precisam participar, como você vê aqui: tem os quatro microfones e eles são todos tratados igualmente. Um governo não pode falar três vezes antes que a sociedade civil fale uma vez: eles seguem a ordem. Esse é o conceito que está tentando emergir disto e ele é importante.

E eu não estou sabendo de nenhuma divergência entre nós e as autoridades brasileiras, particularmente Virgílio e Benedicto [Fonseca Filho, embaixador, membro do comitê executivo da NETMundial]. É a visão deles também, mas eu não quero falar por eles.

Folha - Se a Icann se tornar a estrutura básica para uma governança internacional da internet, os EUA aceitarão uma supervisão por governos ou organizações multilaterais?

Strickling - Não. Quando anunciamos nossa decisão de fazer a transição, para fora da nossa lei atual com as funções da Iana [Internet Assigned Numbers Authority, departamento da Icann que administra domínios e protocolos], dissemos que uma das coisas que não aceitaríamos era algo que nos substituísse por um grupo de governos. Nós queremos que seja multissetorial.

Folha - Voltando ao discurso de Dilma, que mencionou [Edward] Snowden. Qual é a sua visão do discurso em si? Buscou uma ponte com os EUA?

Daniel - O discurso dela se moldou em torno da aprovação do Marco Civil, que é realmente uma peça legislativa assombrosa, eu soube que foram três anos para aprovar no Congresso. É uma façanha extraordinária. Eu vi o discurso dela por essa perspectiva. Do ponto de vista de Washington, foi uma grande realização. E damos grande apoio a isso, conseguir aprovar uma legislação assim.

Eu vi o discurso também pela perspectiva de dar o pontapé inicial no que provou ser uma conferência muito bem-sucedida. É realmente sem precedentes, em sua estrutura e sua organização. Nunca vi algo assim. Como disse Larry [Strickling], é um tributo ao Brasil, por ter conseguido colocar de pé algo assim, ter todas as pessoas falando de diferentes partes do mundo. Isso foi legal, foi simplesmente incrível. Novamente, é algo que apoiamos com força.

Folha - O que se pode esperar da vinda do vice-presidente [Joe Biden, em junho], para as relações bilaterais?

Daniel - É um símbolo da contínua importância que os EUA colocam na relação que temos com o Brasil. O Brasil é um parceiro estratégico, um parceiro muito importante para os EUA. O vice-presidente está muito animado em vir para cá, para a Copa do Mundo. E eu sei que a disputa entre o pessoal da Casa Branca para estar nessa viagem é bastante intensa [risos], porque muitas pessoas querem estar aqui, para ver os jogos de futebol. Eu penso que todos estão aguardando com interesse, como um bom passo para continuar na construção da relação estratégica com o Brasil.


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