Folha de S. Paulo


Questão 'o ovo ou a galinha' não se aplica a 'a língua e o dicionário'

A língua e o dicionário nem de longe podem protagonizar a velha questão que envolve o ovo e a galinha: quem veio primeiro?

Não é o dicionário que determina o que pode/deve ou não pode/deve ser usado. Um bom dicionário é simplesmente um cartório da língua. Nele se registram e se definem os vocábulos que têm uso significativo num determinado corpus ("coletânea ou conjunto de documentos sobre determinado tema", na definição do "Houaiss"). A explicação dos significados desses vocábulos normalmente é precedida da abreviatura da rubrica temática, ou seja, do "território" em que se emprega esse termo (linguagem informal ou formal, jurídica, cibernética etc.).

FÁBRICA DE PALAVRAS

É claro que as edições recentes dos nossos dicionários registram inúmeros verbetes gestados no imenso ventre da linguagem da informática, da economia, da ciência ou dos inúmeros guetos, mas a velocidade desse acolhimento nem sempre é a que se espera, sobretudo nas versões impressas, caso perfeitamente compreensível.

E os dicionários on-line? Fiz um teste com a última versão on-line do "Houaiss". Procurei diversas palavras "novas" provenientes do grande ventre. Achei uma boa parte delas, quase todas mantidas em sua grafia original (inglesa). Se alguém procurar ali algum dos 42 termos ligados à linguagem da internet recentemente adicionados ao dicionário "Oxford", provavelmente não achará nenhum, o que se explica pelo ainda escasso uso desses termos entre nós. Quando cá chegarem e se propagarem, não haverá saída: será preciso registrá-los.

Pois chegamos a um ponto interessante: como proceder diante de um termo "invasor"? O que se faz? Aportuguesa-se tudo? Rejeita-se tudo? Ou nem se rejeita nem se aportuguesa, mas procura-se a palavra portuguesa "legítima" que traduza a novidade?

Rarará! Isso tudo é como querer determinar para onde deve ir o vento. Toda tentativa de disciplinar a entrada de termos estrangeiros redunda em rotundo fracasso. Muitas vezes, o termo vem e fica como veio, ou seja, no original (inglês, quase sempre). Mas há casos em que a forma estrangeira simplesmente (e surpreendentemente) não pega; o que pega mesmo é a forma do nosso idioma.

Um caso interessante e um tanto esquizofrênico é "HD", sigla de... De "alta definição", mesmo. No Brasil, ninguém diz transmissão em "AD", assim como ninguém diz transmissão em "high definition". Pegou a sigla, mas não pegou a expressão inglesa "por extenso".

Bem, a única coisa a combater é a babaquice, o deslumbramento. Querer usar ou impor na marra um termo estrangeiro que não vinga e que tem equivalente em português, conhecido e usado, é simplesmente ridículo.

E como agem em relação a isso os demais povos? No mundo hispânico, a começar pela própria Espanha, a resistência aos termos estrangeiros é forte. Nada de "mouse". O computador funciona mesmo com o "ratón", o que também ocorre em Portugal ("rato"). Já a Itália é bem chegadinha a um estrangeirismo, sobretudo se for inglês, pronunciado ali geralmente de maneira caricata, hilariante, quase ridícula.

Cabe aqui uma importante observação: não posso deixar de lembrar que a língua é como a roupa que usamos, escolhida de acordo com a situação. O que quero dizer com isso? Que o que vale nos diversos meios "internéticos" de comunicação nem sempre vale em outros territórios da linguagem. Ainda não se faz ciência com a linguagem de guetos ou tribos, fechada, cheia de abreviações e junções de termos, nacionais ou estrangeiros. Devagar com o andor. É isso.


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