Folha de S. Paulo


Na literatura, "novos" termos, gerados ou não na web, enriquecem narrativa

Se o narrador ou o universo de uma história pedem, não vejo problema em usar termos em inglês ou "gerados" pela internet. Pelo contrário: é o tipo de coisa que pode dar cor, dizer muito sobre a trajetória ou visão de mundo de um personagem ou narrador específicos.

O mais importante, acho, é ter em mente que: escolher uma palavra é não escolher outra. Ao usar uma palavra estamos colocando-a em circulação. De certo modo, mantendo-a viva. E o contrário é verdade também: cada vez que escrevemos "ELEGANTE" um reator explode em Fukushima e doze gerações da palavra "GARBOSO" morrem no Pacífico.

FÁBRICA DE PALAVRAS

Porque para além do enredo e dos temas, dos personagens e do tom, há sempre as palavras.

Nos últimos anos, editei no Brasil três livros do escritor português Valter Hugo Mãe. Vez ou outra me perguntam a razão de não adaptar o texto para o português brasileiro. Em primeiro lugar, trata-se de uma só língua, o português --e não é possível "traduzir" do português para o português. Fazer ajustes ("abrasileirar" ou "aportuguesar" o vocabulário) seria apagar particularidades, reduzir possibilidades da língua e da cultura.

Ler um livro é também entrar em contato com essas possibilidades. E se a internet gera palavras, isso faz parte do nosso tempo e pode ser usado por quem escreve para criar algum tipo de efeito (as palavras são tudo).

Na Flip de 2011, um escritor húngaro, Péter Esterházy, precisou ler um trecho de seu livro em alemão. Era uma questão prática (não havia um tradutor simultâneo do húngaro). Após a leitura e antes de começar o debate (que seria feito em alemão também), pediu para dizer uma coisa --que me pareceu uma forma sutil e garbosa de dizer que, para ele, não ler em húngaro fazia, sim, toda diferença.

"Antes de começar", falou, "quero dizer que não tenho nada além das palavras. Mais especificamente, as palavras húngaras. Elas representam todo o meu valor. Construo tudo com elas: meus sentimentos, minha mãe, meu pai, a morte da minha mãe. No fim, só existe isso: o que eu construí com essas palavras".

Emilio Fraia é escritor e editor, autor do romance "O verão do Chibo" (Objetiva/Alfaguara, em parceria com Vanessa Barbara) e da graphic novel "Campo em branco" (Companhia das Letras, com DW Ribatski)


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