Folha de S. Paulo


Erros travam projeto do Aakash, o tablet mais barato do mundo

A ideia era cativante, e continua sendo: em 2011, o governo indiano e dois empreendedores de tecnologia nascidos no país apresentaram ao mercado um tablet de US$ 50, que seria produzido na Índia com o sistema operacional Google Android. O governo adquiriria milhões desses computadores e os forneceria aos alunos das escolas indianas.

Os entusiastas viam o plano como forma de levar a moderna computação de tela de toque a algumas das pessoas mais pobres do mundo, e de criar a base para um setor de fabricação de bens de tecnologia na Índia. Legiões de compradores fizeram encomendas antecipadas da versão comercial do tablet, entusiasmados pela possibilidade de terem em mãos uma prova tangível da liderança indiana na "inovação frugal".

Até mesmo o secretário geral da ONU, Ban Ki-moon, elogiou fortemente o audacioso projeto, conhecido como Aakash, a palavra híndi para "céu". "A Índia é uma superpotência na rodovia da informação", disse Ban em uma cerimônia na sede da ONU em Nova York, em novembro.

METAS AUDACIOSAS

As expectativas eram alimentadas pelas declarações de Suneet Singh Tuli, o carismático presidente-executivo da empresa sediada em Londres que venceu a concorrência para tocar o projeto. "Estou criando um produto de preço inferior ao de qualquer rival no mundo, na esperança de que isso afete a vida das pessoas e me permita ganhar dinheiro", ele declarou em entrevista recente.

Mas ao longo dos últimos meses, se tornou cada vez mais claro que Tuli, 44, e seu irmão Raja Singh Tuli, 46, não serão capazes de cumprir suas mais audaciosas promessas.

Os Tuli reconhecem que sua companhia, a DataWind, não chegou nem perto de embarcar os 100 mil tablets prometidos para escolas de ensino superior indianas até o final do ano passado. A maior parte dos cerca de 10 mil tablets entregues até o começo de dezembro foram fabricados na China, a despeito das promessas iniciais da companhia de que produziria na Índia. Os documentos financeiros entregues às autoridades regulatórias britânicas mostram que a empresa está no vermelho, e muito.

E toda a premissa do projeto --a de que a Índia é capaz de produzir um tablet barato que de alguma maneira resolva os problemas do deficiente sistema de educação do país-- tem algo de fundamentalmente incorreto, de acordo com alguns especialistas em educação e indústria.

CONTROVÉRSIA

Leigh Linden, professor assistente de Economia e assuntos públicos na Universidade do Texas em Austin, que estudou o uso da tecnologia nas escolas da Índia e outros países emergentes, disse que, na melhor das hipóteses, os computadores se equiparam aos avanços de desempenho propiciados por projetos muito menos dispendiosos, que envolvem a contratação de mais professores ou assistentes de ensino. E em alguns casos, o professor Linden afirma que a adoção dos computadores pode prejudicar os resultados dos alunos nos exames.

"Com base nas pesquisas disponíveis", ele afirmou, "essa não seria a estratégia mais efetiva para a educação nos países em desenvolvimento".

A ideia de que o fraco setor industrial indiano será capaz de acompanhar o da China no hardware avançado de computação também parece um exagero a muitos especialistas. "A China se tornou o centro industrial do planeta, e a Índia perdeu o trem, quanto a isso", disse Surjit Bhalla, economista e diretor executivo da Oxus Investments.

Até agora, o governo indiano vem se mantendo firme em seu apoio ao projeto.

"Todas as ideias realmente inovadoras parecem ambiciosas quando concebidas", afirmou o Ministério de Desenvolvimento de Recursos Humanos, que supervisiona o projeto Aakash, em declaração enviada por e-mail. O Aakash é um "projeto muito abrangente", e não só a criação de um tablet, segundo o ministério. Com ele, o governo planeja "criar todo um ecossistema industrial" na Índia.

Entrevistas com executivos da DataWind, autoridades indianas, industriais chineses, parceiros de negócios do projeto e alguns dos trabalhadores nele envolvidos mostram uma pequena companhia familiar que terminou soterrada sob um projeto complexo que até mesmo os ferozmente competitivos fabricantes chineses de bens tecnológicos consideram desafiador, ao preço de venda definido pelo governo indiano.

Conduzindo visitantes em uma demonstração das operações da pequena fábrica de telas de toque da companhia em Montreal, Raja Tuli, co-presidente do conselho e vice-presidente de tecnologia da DataWind, declarou em novembro que inicialmente havia se oposto ao desejo de seu irmão de participar da concorrência para o projeto Aakash, e expressou arrependimento persistente.

"Nós terminamos amarrados nisso", disse. "Estamos fazendo o melhor que podemos".

O verdadeiro objetivo da DataWind, disse Tuli, é vender acesso sem fio de internet a baixo preço em países emergentes como a Índia. Ele afirma que a tecnologia exclusiva de compressão de dados desenvolvida por sua empresa e adotada já há alguns anos no Reino Unido em um aparelho chamado PocketSurfer permite a transmissão eficiente de conteúdo de páginas de Web usando redes mais antigas de telefonia móvel.

"Nossa maior contribuição é o nosso software", disse Tuli. "O fato de que estejamos produzindo hardware é uma atividade menor em que nos envolvemos como parte do processo. Não é o que planejávamos fazer, mas é aqui que chegamos".

'REVOLUÇÃO'

Para o governo da Índia, o projeto Aakash deveria criar uma revolução de computação no país.

Ainda que a Índia tenha sido uma das pioneiras na terceirização de serviços tecnológicos, e que o trabalho de computação de muitas das maiores empresas mundiais continue a ser executado no país, apenas uma pequena porção de sua população tem acesso a computadores e à internet.

Já houve outros projetos para levar computadores a países em desenvolvimento como a Índia --o mais notável dos quais é o One Laptop per Child, criado por Nicholas Negroponte do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e financiado por diversas companhias ocidentais de tecnologia. O projeto tinha por objetivo criar um laptop com preço de US$ 100 para distribuição às crianças do planeta, mas encontrou dificuldades devido a diversos desafios técnicos, de produção e de concorrência.

Reprodução
Laptop de US$ 100 do projeto One Laptop per Child
Laptop de US$ 100 do projeto One Laptop per Child

"Essa é a nossa resposta ao computador de US$ 100 do MIT", disse Kapil Sibal, ministro das Comunicações e Tecnologia da Informação indiano, ao anunciar o projeto Aakash, em 2010.
Suneet Tuli, cuja família emigrou da Índia para o Canadá quando ele era menino, certamente acatou essa visão. Da mesma forma que a forte queda nos preços dos celulares e da telefonia móvel possibilitou uma revolução nas comunicações indianas, um tablet barato poderia transformar as salas de aula do país e, mais adiante, beneficiar todos os pobres da Índia, ele declarou em entrevista, em outubro de 2011.

Na Índia, existe "um bilhão de pessoas excluídas", ele disse, "e a maneira de inclui-las é baixar os preços".

Mas a DataWind se viu soterrada pela escala do projeto desde o começo.

As especificações do governo eram um desafio, e nenhuma das gigantes da tecnologia indiana, como a HCL ou a Wipro, entrou nas concorrência. A DataWind apresentou a proposta mais baixa, prometendo fornecer os tablets por 2.276 rúpias, incluindo custos de entrega --cerca de US$ 50 às taxas de câmbio então vigentes e US$ 40 agora.

Em entrevista recente, Suneet Tuli disse que a DataWind havia calculado que seria capaz de reduzir custos melhorando os projetos padrão do setor e fabricando ela mesma as telas de toque, no Canadá, a um preço inferior ao que poderia adquiri-las na China.

Em uma decisão fatídica, Tuli também prometeu fabricar o tablet na Índia, ainda que os fabricantes do país não tivessem experiência real na produção desse tipo de hardware. Embora o governo não tivesse feito essa exigência, a promessa intensificou o fervor patriótico em torno do projeto e gerou publicidade para os planos da DataWind de vender tablets comercias mais caros e acesso à internet por US$ 2 ao mês na Índia.

PARCERIA FRUSTRADA

Em vez de construir fábricas, a DataWind buscou parceiros indianos, a começar pela Quadra Electronic, de Andhra Pradesh, que fabricava caixas registradoras, máquinas de escrever eletrônicas e impressoras, mas jamais havia produzido tablets.

Mas poucos meses mais tarde as duas companhias desfizeram sua associação.

De acordo com Suneet Tuli, os problemas começaram quando a universidade que supervisionava o projeto rejeitou os primeiros tablets apresentados e exigiu melhoras. O relacionamento se desfez depois que a DataWind descobriu que a Quad planejava produzir um tablet concorrente, ele disse.

Mas Raminder Singh Soin, diretor executivo da Quad, disse em entrevista telefônica este mês que o produto da DataWind "não era bom o bastante", e que "faltavam muitas coisas no tablet Aakash", apontando para o fato de que o microprocessador selecionado não seria capaz de acionar os recursos prometidos para o tablet.

Soin disse que a DataWind não pagou pelos tablets que a Quad produziu, ou pelos componentes que ela adquiriu para produzir outras 30 mil unidades do Aakash. Ele estima que a parceria frustrada tenha lhe custado 150 milhões de rúpias, ou cerca de US$ 3 milhões. Suneet Tuli diz que sua empresa nada deve à Quad.

Para agravar os problemas da DataWind, a empresa começou a aceitar encomendas para a versão comercial do tablet, conhecida como UbiSlate, apenas uma semana depois de apresentar o Aakash. Em seis semanas, ela já tinha 300 mil pedidos, declarou Suneet Tuli em entrevista, no começo de 2012. No mês passado, ele diz, os pedidos do UbiSlate já haviam atingido a marca dos quatro milhões.

PESO DE PAPEL

Mas a DataWind não dispõe da capacidade de produção, marketing e assistência ao consumidor necessária a atender nem mesmo uma fração desses pedidos. O resultado é uma onda de fúria da parte dos consumidores.

Edwin Richard Toppo, 25, profissional de recursos humanos em Déli, pediu um UbiSlate em agosto. Semanas depois de ter recebido o tablet, ele contou em entrevista telefônica, as duas portas USB do aparelho pararam de funcionar. Depois, o chip de telefonia enguiçou, e em seguida foi a tela de toque que apresentou defeitos, conta.

"É um peso de papel", disse Toppo, afirmando que dezenas de telefonemas ao serviço de assistência ao cliente da DataWind ficaram sem resposta.

Em entrevista recente, Suneet Tuli reconheceu que a empresa está enfrentando dificuldades. "Infelizmente, a escala de tudo que estamos enfrentando excede a imaginação", disse.
A DataWind está tentando priorizar pedidos, afirmou, entregando cerca de 2,5 mil tablets por dia e oferecendo restituir os pagamentos dos clientes que preferirem não esperar. Os clientes "ainda recebem um produto de classe mundial, por uma fração do preço usual", diz.

Para ajudar a recuperar seu atraso no atendimento de pedidos, a DataWind diz ter assinado com quatro novos parceiros indianos a fim de obter ajuda na produção de tablets.

Mas a companhia não conseguiu cumprir o prazo de entrega de 100 mil tablets ao governo indiano, encerrado em 31 de dezembro, e conseguiu uma prorrogação até o dia 31 de março. Suneet Tuli diz esperar que sua companhia consiga cumprir o contrato no novo prazo.

PRODUÇÃO CHINESA

Em um esforço para cumprir seus compromissos, a companhia transferiu a produção à China no final do ano passado. Pelo menos três companhias chinesas estão montando um tablet melhorado, o Aakash-2, para a DataWind, e milhares de unidades já foram embarcadas para a Índia, de acordo com uma entrevista com fabricantes chineses e documentos mostrados ao "New York Times".

Representantes das companhias chinesas dizem que seu lucro por aparelho é da ordem de US$ 1, e expressam dúvidas quanto à capacidade da Índia para concorrer como fabricante de eletrônicos.

"Os tablets da DataWind podem ser fabricados em Shenzhen mas não na Índia, porque Shenzhen tem uma cadeia industrial plenamente desenvolvida", diz um gerente da Kalong Technology, uma das companhias envolvidas, que pediu que seu nome não fosse mencionado porque não quer atrair a atenção da imprensa. "Se você abre uma padaria, precisa saber onde obter farinha boa e a bom preço".

Uma visita recente à fábrica indiana da DataWind em Amritsar, no bairro de Ghee Mandi, oferece prova de que a companhia ainda tem muito a avançar.

No térreo, fileiras de caixas de papelão esperam embarque, algumas delas portando o nome da Easydy, uma companhia que monta tablets em Shenzhen. Ibadat Singh, vice-presidente de operações da DataWind, diz que a empresa não está comprando tablets prontos na China, mas sim reciclando as caixas que vêm de lá. "Por que usar caixas novas?", ele pergunta.

Dois andares acima, 16 homens sentados a uma mesa retangular programam tablets e instalam aplicativos, diz Singh. Um deles trabalhava com uma chave de fenda em um aparelho sem tampa. Outros soldavam fios ou estavam testando unidades. Um homem embalava tablets cuidadosamente em plástico-bolha e os colocava em caixas brancas.

A fábrica produz cerca de mil unidades diárias, diz Singh. Montar um tablet requer cinco minutos, e programá-lo mais dois. É tão fácil, ele disse ao repórter, "que você poderia fazê-lo".
Na entrevista concedida em Montreal em novembro, porém, Raja Tuli descreveu as dificuldades de produzir na Índia, mencionando problemas como atrasos prolongados na fronteira e infraestrutura deficiente.

"É muito mais fácil na China, claro, porque toda a infraestrutura já existe e o capital é mais barato", disse. "Na Índia, é possível fazê-lo, mas o processo demora mais".

Ele se recusou a dizer se a DataWind participaria de futuras concorrências do projeto Aakash para fornecer tablets ao governo. Mas disse que a empresa não abandonaria seus planos de produzir e vender tablets baratos na Índia.

"Não vamos desistir por conta de pequenos problemas", disse. "Temos o compromisso de realizar nossos planos. Na vida, as coisas sempre são mais difíceis do que imaginávamos".

Tradução de Paulo Migliacci


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