Folha de S. Paulo


Turismo comunitário na Amazônia apresenta dia a dia ribeirinho

Por três décadas, Roberto Brito, 42, trabalhou retirando madeira da mata para sobreviver. Porém, era ilegal o ofício desse morador da comunidade ribeirinha Tumbira, que fica dentro da unidade de conservação RDS Rio Negro, a cerca de uma hora e meia de barco de Manaus.

Há cinco anos, Brito trocou a extração ilícita de madeira por um trabalho novo. Sem tradição no turismo, ele gerencia, desde 2012, uma pousada em Tumbira, um negócio familiar voltado a visitantes que buscam o chamado turismo de base comunitária.

O modelo dispensa luxos e propõe uma imersão no modo de vida de comunidades tradicionais, como os ribeirinhos da Amazônia.

Na Pousada do Garrido, o empreendimento tocado por Brito, o visitante se hospeda em um quarto simples, com a opção de dormir em rede. A cama tem lençóis impecavelmente limpos e o quarto é bem protegido de insetos, comuns em áreas de selva. Um ventilador ajuda a espantar o calor. No café da manhã, o turista come raízes (mandioca, batata-doce) e banana-da-terra, tal como o costume local. Ovos, queijo e sucos de frutas como caju e cupuaçu complementam o desjejum.

A eletricidade é intermitente, por isso o banho é frio: não há chuveiro elétrico. O sinal de telefone e internet oscila entre escasso e inexistente.

Ainda incipiente no país, o turismo de base comunitária vem sendo fomentado por ONGs como a FAS (Fundação Amazonas Sustentável), que veem na atividade mais um elemento para compor a renda de comunidades indígenas e ribeirinhas e evitar o desmatamento.

O turismo entra, assim como o extrativismo de frutos e sementes, a agricultura de subsistência, o artesanato e os programas de inclusão social, como uma alternativa econômica numa região de oportunidades escassas.

Desde que a Pousada do Garrido iniciou as atividades, a maior quantidade de visitantes que recebeu foi 80, ao longo de um ano. O negócio tem capacidade para 12 pessoas (pode chegar a 15, já que outros moradores oferecem quartos para pernoite), emprega seis parentes e provê 90% da renda da família.

DEMANDA

O maior desafio ainda é trazer os viajantes: Brito chegou a ser procurado por agências de turismo na época da Copa do Mundo, mas não quis fechar pacotes, com receio de não dar conta da demanda.

"O visitante que vem para cá é aquele que quer se envolver com a comunidade, fazer um trabalho voluntário, se enfiar na mata. Não é para qualquer um", diz Brito.

São pessoas como o servidor público Érico Rocha, 29, que vasculha o país atrás de viagens rústicas. Já visitou Alter do Chão (PA), dormindo em redes na casa dos ribeirinhos, e fez atividades como focagem de jacarés e churrasco de piracaia na praia de rio. Também visitou a Chapada Diamantina, na Bahia, se hospedando com um projeto de turismo comunitário e fez o mesmo em uma viagem como mochileiro ao Panamá.

Na Amazônia, Rocha vê a iniciativa como uma forma eficaz de gerar renda, desde que bem conduzida. "É um instrumento válido, mas precisa ter um limiar correto para não se tornar insustentável. Para isso é preciso uma liderança comunitária forte."

Além do viés aventureiro, o turismo comunitário amazônico atrai pessoas sensibilizadas com a questão ambiental e que pesquisam sobre área ou trabalham no setor. O holandês Richard van der Hoff, 31, economista que faz doutorado sobre serviços ambientais na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), sempre quis uma experiência de imersão na região.

"Eu sabia da existência do turismo convencional, com hotéis de selva e passeios de barco, mas buscava uma experiência mais íntima, mais autêntica", afirma, após uma trilha guiada na mata debaixo das fortes chuvas, comuns na Amazônia em novembro, início do período chuvoso.

ISOLAMENTO

Apesar das boas intenções, nem sempre os projetos de turismo comunitário conseguem caminhar com as próprias pernas. Na comunidade vizinha de Santa Helena do Inglês, foi aberta, em 2014, a Pousada Vista do Rio Negro, com a intenção de ser 100% gerenciada pela comunidade.

Erguido no estilo palafita, já que as águas do rio Negro ficam altas em boa parte do ano, o espaço tem oito quartos, para até três pessoas cada um, bar e restaurante.

O projeto é uma iniciativa da FAS em parceria com a Prefeitura de Iranduba (AM) e empresas privadas. Mas amarga a falta de hóspedes: hoje só abre quando tem visitas programadas, geralmente em eventos da ONG.

O motivo é a ausência de comunicação desde 2016, quando a única torre de celular próxima à comunidade, que ficava em um hotel de selva que faliu, foi desativada. Sem sinal de celular nem internet fica difícil promover o empreendimento. "A comunidade perdeu 50% de sua renda porque estamos isolados", diz Lucimar de Mendonça, que trabalha na pousada.

Para repor a renda perdida com o insucesso da operação, as 108 pessoas do povoado se viram plantando mandioca, produzindo farinha para vender e também contam com rapasses do Bolsa Família e do Bolsa Floresta, que paga mais R$ 50 por mês a quem vive em áreas protegidas.

Mas a esperança de ganhar dinheiro com o turismo ainda se mantém. Os moradores reuniram mais de mil assinaturas num abaixo-assinado enviado ao Estado, pedindo a instalação de uma nova antena. Técnicos da empresa que cuida das telecomunicações no Amazonas fizeram um pré-projeto para a construção de uma estrutura de repetição do sinal da antena da operadora mais próxima.

Segundo o Estado, a inexistência de antena é uma questão comercial, da competência das operadoras.

COMIDA TÍPICA

Peixes recém-pescados no rio Negro, jambu refogado, baião de dois, mandioca, molho de tucupi. O cardápio simples, recheado das referências amazônicas, é a aposta do restaurante comunitário Sumimi para atrair visitantes.

Gerenciado por índios da etnia kambeba, o lugar foi inaugurado em 2011 como iniciativa de turismo de base comunitária no povoado Três Unidos, a 60 km de Manaus, na APA (área de proteção ambiental) do rio Negro.

A comunidade indígena entrou na rota do turismo na região por viver perto do arquipélago das Anavilhanas e receber visitantes que chegam principalmente pelo navio Iberostar, que parte de Manaus em direção às ilhas e faz ali uma parada semanal.

Por vez, desembarcam em média cem turistas, que almoçam no local e compram o artesanato típico dos kambeba, feito com madeiras e sementes de açaí.

Pequenos roçados de mandioca, a produção de farinha, a caça e a pesca completam a subsistência na comunidade, onde vivem 80 pessoas.

A ideia de criar o restaurante veio do tuxaua (líder indígena) Waldemir Silva, ou Triukuxuri, seu nome kambeba, e teve apoio da FAS (Fundação Amazonas Sustentável), que promove o turismo comunitário na região.

"O tempo de cortar madeira para fazer roça passou. Hoje o que queremos é preparar nossos filhos para estudar e ajudar a proteger a natureza", diz o tuxaua.

Que o diga sua filha Neurilene Cruz, Miskui na língua indígena, 33, técnica em enfermagem que trabalha no posto de saúde local. Mas ela se sente realizada mesmo comandando panelas no restaurante, e já representou seu povo na Figa, maior feira gastronômica do Amazonas.


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