Folha de S. Paulo


Conceito de redução de danos surgiu após a Primeira Guerra Mundial

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Reduzir danos é controlar efeitos de um problema sem eliminar sua causa. Aplica-se a diversos eventos, de um desastre natural a crises empresariais, passando por questões de saúde pública. Foi neste último aspecto que o termo começou a ser usado.

Na área da saúde, redução de danos é entendido como um conjunto de estratégias para reduzir malefícios relacionados ao uso de substâncias lícitas ou ilícitas que causam dependência sem visar a cessação do consumo. As primeiras experiências oficiais de aplicação do conceito foram feitas na Inglaterra, na década de 1920.

"Na Primeira Guerra, soldados tratados com morfina ficaram dependentes de opioides. Como desenvolveram o vício defendendo o país, argumentou-se que o Estado tinha obrigação de fornecer a substância para minimizar os riscos da retirada brusca", diz o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, da Unifesp (Universidade Federal de SP).

Essa compreensão foi oficializada no "Relatório Rolleston" -recomendações de uma comissão presidida pelo ministro da Saúde do Reino Unido, Humphrey Rolleston. O documento autorizou médicos britânicos a prescreverem ópio a dependentes em situação de risco.

"Apesar de apelar a um certo 'patriotismo', por estar ligada a heróis da guerra, a estratégia nunca foi completamente aceita por questões culturais, era vista com desconfiança tanto pela população quanto pela comunidade científica", diz Xavier.

Sem respaldo, a redução de danos ficou cerca de 50 anos na obscuridade. O conceito voltou à tona na década de 1980, quando a A Junkiebond (união junkie), associação holandesa de usuários e ex-usuários de drogas, chamou a atenção para a disseminação da hepatite B pelo compartilhamento de seringas contaminadas.

Os danos apontados não se restringiam aos usuários de drogas injetáveis: uma epidemia da hepatite afetaria a sociedade como um todo. Naquele cenário, o governo holandês implantou o primeiro programa de troca de seringas em Amsterdã, em 1984.

"A troca de seringas é um paradigma na redução, porque mostrou trazer benefícios sem aumentar o consumo de drogas", afirma Xavier.

Ainda na década de 1980, o primeiro seminário de Aids do mundo foi realizado em Santos (SP). Um dos desdobramentos foi o programa de troca de seringas para controlar a disseminação do HIV proposto pela prefeitura santista, mas a iniciativa acabou embargada após pressão do Ministério Público.

Só em 1995 esse tipo de ação vingou no país, realizado na Bahia pelo CETAD (Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas), da UFBA, com recursos da Coordenação Nacional de DST/Aids.

Foi na década de 1990 que a redução de danos começou a ser reconhecida como uma política de saúde pública.

ESTIGMA

"Muitas pessoas acham a proposta maluca, associam ao estigma do 'drogado', mas os estudos sobre a redução de danos fizeram muitos especialistas perceberem que podia funcionar também com substâncias lícitas que causam dependência, como álcool e tabaco", diz Xavier.

Iniciativas nessa área vão do tratamento individual às políticas públicas. Por exemplo, uma campanha como "Se beber, não dirija" é uma forma de reduzir os danos sociais do alcoolismo.

Do ponto de vista individual, a perspectiva da redução de danos aumenta as possibilidades de autocuidado. "É uma estratégia pensada em conjunto com o dependente que oferece um meio-termo ao discurso 'tudo ou nada'", de acordo com Raona Carolina Roncho, psicóloga da associação É De Lei.

As estratégias "personalizadas" e que não envolvem abstinência usam recursos que vão de comunidades terapêuticas à substituição de uma droga psicoativa por outra que cause menos danos, mas não são consenso na comunidade científica.

SUBSTITUTO

No caso do tabagismo, um problema é o fato de não haver níveis seguros de consumo. "A melhor política é parar de fumar", diz José Humberto Fregnani, diretor de ensino e pesquisa do Hospital do Câncer de Barretos e tradutor do "Atlas do Tabaco".

Fregnani, porém, não prega o tudo ou nada. "Estratégias para diminuir o consumo não são ideais, mas, como as doenças causadas pelo tabagismo são dose-dependentes, quanto menor o consumo, menor o risco", diz ele.

No caso da legislação coibindo fumo em lugares fechados, Fregnani considera a estratégia bem-sucedida: além de evitar danos coletivos do fumo passivo, tem diminuído o número de fumantes ativos no Brasil, segundo ele.
o mesmo não vale para os substitutos como cigarro eletrônico e dispositivos que aquecem tabaco sem combustão, conforme Fregnani.

"Não há estudos comprovando segurança da solução usada nos cigarros eletrônicos, nem evidência de que não queimar o tabaco reduz o risco de câncer", afirma.

*

A história da redução de danos

1926
O 'Relatório Rolleston', conjunto de recomendações de uma comissão presidida pelo ministro da Saúde do Reino Unido, sir Humphrey Rolleston, autoriza médicos britânicos a prescreverem ópio a dependentes em situação de risco e para diminuir sofrimento da retirada brusca da droga. A medida visava principalmente pessoas que desenvolveram a dependência durante tratamento com substâncias como a morfina, situação comum a ex-combatentes feridos na Primeira Guerra

1984
A Junkiebond (união junkie), associação holandesa de usuários de drogas, chama a atenção das autoridades para a disseminação da hepatite B pelo compartilhamento de seringas; governo holandês implanta o 1º programa de troca de seringa em Amsterdã

Nos EUA, a primeira goma de nicotina é lançada no mercado

1989
A prefeitura de Santos (SP) propõe um programa de troca de seringas para controlar a disseminação do vírus HIV, embargado pelo Ministério Público

1995
O Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas da UFBA inicia o primeiro programa de troca de seringas no Brasil com recursos da Coordenação Nacional de DST/Aids

1996
Os EUA aprovam a venda sem receita médica de gomas para terapia de reposição de nicotina

No Brasil, lei federal proíbe o fumo em aviões e veículos de transporte coletivo

1998
Pela primeira vez no Brasil, os maços de cigarro estampam uma mensagem sobre os riscos do tabagismo: "O Ministério da Saúde adverte: fumar faz mal à saúde"

1999
O Governo brasileiro cria a Comissão Nacional para o Controle do Uso do Tabaco e o Inca (Instituto Nacional do Câncer) torna-se responsável pelo programa de controle ao tabagismo que inclui, entre suas metas, proteger os não fumantes dos perigos da fumaça ambiental do tabaco e promover a redução de danos causados pelo cigarro

2001
Medida Provisória determina que material de propaganda e embalagens de produtos derivados do tabaco para o mercado interno contenham advertências de risco acompanhadas de imagens que ilustrem os danos

2003
Os primeiros cigarros eletrônicos são desenvolvidos na China

2004
O Ministério da Saúde institui o Programa de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas na portaria 11.343/2004

2005
A portaria nº 1.028/2005, do Ministério da Saúde, regulamenta os programas de redução de danos como política de saúde pública

2007
A OMS (Organização Mundial da Saúde) ratifica a Convenção Quadro para Controle do Tabaco, com orientações para medidas como criação de áreas livres de fumo, restrição de propaganda e advertência sobre os danos do tabagismo

Os cigarros eletrônicos começam a ser comercializados nos EUA

2009
O governo lança o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas para diversificar ações de redução de riscos associados ao consumo

Em SP, a lei antifumo proíbe o cigarro em ambientes públicos

Anvisa proíbe a venda e importação do cigarro eletrônico

2014
Aparelho para aquecer o tabaco sem queimá-lo e gerar vapor em vez de fumaça, potencialmente redutor de riscos do tabagismo, é testado no Japão e na Itália pela Phillips Morris

2016
Em Milão uma loja especializada em dispositivos para aquecer o tabaco é inaugurada pela British American Tobacco


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