Folha de S. Paulo


Gilberto da silva, 38

'Era motoboy e peladeiro, perdi as duas coisas'

Bruno Santos/ Folhapress
Gilberto da Silva na garagem de sua casa, em Carapicuíba (SP)
Gilberto da Silva na garagem de sua casa, em Carapicuíba (SP)

Resumo Gilberto da Silva, 38, tinha 24 anos quando sofreu o acidente que mudou sua vida. Ao cruzar uma linha férrea em Barueri (Grande SP), bateu num trem. A cancela e o sinal sonoro da via estavam quebrados. O motoboy teve o pé direito arrancado. Tornou-se jogador de vôlei sentado e foi a três Jogos Paraolímpicos. Hoje, não arrisca mais pilotar motos.

*

Eu me lembro bem daquela noite: 13 de setembro de 2003, 19h25. Naquele fim de semana, disse à minha mãe que não queria subir na moto. Havia sido atropelado duas vezes durante a semana por motoristas de carro que fizeram uma conversão proibida. Não aconteceu nada grave, só ralei o cotovelo, mas aquilo me deixou ressabiado.

Tenho uma ligação com o trânsito desde pequeno. Aos 12 anos, comecei a ajudar meu pai, caminhoneiro, que trabalhava para uma madeireira. Quando tirei a carteira de motorista, passei a dirigir também. Rodando com ele por aí de caminhão, a gente viu muita coisa, muito acidente. Aprendi a entender os perigos que corria e tinha medo de que algo acontecesse.

Quando estava com 19 anos, começou uma febre de motoboys. Ganhava-se um dinheiro até que razoável, e eu decidi tentar. Mas tinha muito medo de São Paulo, o trânsito era uma coisa de louco.

Naquela tarde de sábado, estava jogando bola com uns amigos e fazendo uma festa em Carapicuíba, onde eu morava, quando um deles recebeu a notícia de que o filho havia sofrido uma queda. Ele precisava pegar a rodovia Castelo Branco para ir ver a criança, mas não sabia como chegar lá. Peguei uma moto emprestada e fui na frente, mostrando o caminho.

Na volta, estava tranquilo. Fazia aquele caminho todos os dias de ida e volta ao trabalho, em Alphaville. Por isso, não estranhei quando cheguei a um cruzamento na linha do trem, em Barueri, e não vi a cancela. Eu sabia que estava sem a sinalização. Geralmente, eu parava quando ouvia o sinal sonoro mas, como não escutei nada, passei distraído. A sirene não estava funcionando naquele dia. Bati de frente no trem.

Foi uma mistura de falta de sinalização e desatenção. Meu pé foi arrancado na hora. Eu era motoboy e peladeiro. De repente, perdi essasduas coisas.

Minha recuperação foi difícil. Demorei muito tempo para voltar a andar, sentia dores, e ainda tive de passar por uma segunda cirurgia para reparar a primeira. Minha situação financeira ficou complicada, mas sou muito querido, e os vizinhos e amigos me ajudaram.

Cerca de três anos após o acidente, fui convidado para experimentar o vôlei sentado. Eu gostava de futebol, não sabia se ia me adaptar, mas comecei a conseguir bons resultados e vi que era para mim. Hoje, não vivo sem.

Fiz parte da seleção que, no Rio-2007, ganhou o primeiro ouro para o Brasil em Parapanamericanos [é chamado de Giba, como o craque olímpico]. Fui às Paraolimpíadas de Pequim-2008, Londres-2012 e Rio-2016.

Durante a reabilitação, ia ao Hospital das Clínicas todas as segundas. Aproveitava e conversava com pessoas que estavam passando pelo mesmo problema que eu e mostrava como o esporte tinha me ajudado. Levei seis delas para o meu time.

Voltei a dirigir, mas ainda tenho medo. O trânsito em São Paulo está bem pior do que na época em que eu era motoboy. Falta educação, tem acidentes o tempo todo. Se fosse hoje, escolheria outra profissão. Não teria coragem.


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