Folha de S. Paulo


Lei tenta poupar vítimas de crimes sexuais do trauma dos interrogatórios

O pai de M. estranhou quando ela começou a se trancar no quarto. Normalmente animada, M. não queria falar com ninguém e se recusava a ir à escola. Finalmente, a menina de 13 anos resolveu se abrir com o pai. Contou que o vizinho de 22 anos tinha dito que queria dar a ela uma marmita. Quando chegou à casa dele, o vizinho fechou a porta e a estuprou.

J., que é camelô em Salvador, e a filha M. foram até a delegacia fazer a denúncia. Foram atendidos por dois agentes, que a interrogaram: "Você entrou na casa dele porque quis? Não foi forçada, foi? Você tentou reagir quando ele abaixou sua calça?". M. começou a chorar. Na perícia, que comprovou estupro, voltou a ser interrogada.

Quando o caso foi a julgamento, a juíza seguiu a mesma linha: "Como você tem certeza de que foi estupro? Alguém testemunhou?".

Como M., a maioria de crianças e adolescentes que denunciam violência sexual no Brasil passam por um calvário. Precisam repetir a história inúmeras vezes para diferentes autoridades e frequentemente têm seus depoimentos questionados de forma preconceituosa.

Uma lei sancionada no dia 4 de abril, o PLC 21/2017, conhecida como Lei da Escuta Especializada, pode mudar isso. "A criança passa a ser protegida em todo o processo", diz Itamar Batista, gerente de advocacy da Childhood Brasil, organização de proteção a crianças e adolescentes que fez campanha para aprovação da lei.

"A vítima se sente mais à vontade para contar detalhes do abuso e aumenta o índice de responsabilização de adultos", afirma Batista.

Eduardo Knapp/Folhapress

A legislação estipula que a criança deva sofrer o mínimo possível de exposição, limita o relato ao estritamente necessário e estabelece um protocolo para assistentes sociais, policiais e funcionários do Judiciário que irão entrevistá-la. Também proíbe o contato com seu acusado e determina que o depoimento precisa ser tomado em local com privacidade.

A lei prevê ainda treinamento dos agentes para que saibam lidar com as vítimas de forma apropriada e integração entre os serviços de atendimento a saúde, o Judiciário e a polícia.

"Muitas vezes, quando a criança revelava uma situação de violência, era recebida com descrédito ou tratada como adulta e confrontada. Isso provocava desconforto, e ela não persistia na acusação", diz Fabiana Gorenstein, oficial de proteção da Unicef Brasil. "A lei faz a criança ser respeitada e ser tratada como criança. É fruto de um trabalho de dez anos."

Os Estados têm um ano para se adequar às exigências.

DEPOIMENTO ESPECIAL

No Judiciário, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) recomendou em 2010 que os tribunais de Justiça dos Estados implantassem o chamado depoimento especial para crianças e adolescentes. As vítimas são ouvidas em um espaço à parte, fora da sala de audiência. Os assistentes sociais fazem as entrevistas seguindo um protocolo. A Childhood Brasil ajuda a treinar esses funcionários.

"O depoimento especial é um divisor de águas", diz a assistente social Marleci Venério Hoffmeister, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Antes, a criança tinha de falar na frente de vários adultos que nem conhecia. Os assistentes sociais usavam técnicas normais de entrevista: faziam a mesma pergunta várias vezes de formas diferentes, muitas vezes causando desconforto. Com o depoimento especial, seguem um protocolo específico que ajuda a criança a falar sobre questões que envolvem suas partes íntimas e sobre as ações do acusado. Grande parte dos Tribunais de Justiça já segue esse protocolo.

Com a integração de polícia, assistentes sociais e agentes de saúde, prevista na lei, a criança não precisará relatar de oito a dez vezes a violência de que foi vítima.

Na polícia, porém, implementar a lei será um desafio.

"Na polícia precisamos formar as pessoas", diz Batista. "Ainda há preconceito: acham que houve exploração sexual porque a vítima provocou, perguntam por que estava na rua naquele horário, por que usava roupa justa."

Para o gerente de proteção infantil da Plan International Brasil, Flávio Debique, a exploração sexual é resultado de uma combinação de fatores, entre eles "a pobreza em que as famílias se encontram e a sociedade machista, que relativiza a comercialização do corpo da mulher desde a infância". Frequentemente, diz ele, ainda se diz que as crianças estão ali porque querem, ignorando que existe uma disparidade de poder entre a criança e o aliciador.


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