Folha de S. Paulo


análise

É preciso usar bens naturais à luz da tecnologia da América Latina

Pode parecer estranho recorrer à história para considerar o futuro da indústria e da inovação na América Latina. Mas meu trabalho se relaciona com a maneira pela qual velhos padrões podem ser renovados com sucesso em novos contextos: como avançamos, a partir do passado, para aproveitar novas "janelas de oportunidade".

A América Latina foi o primeiro continente a tirar vantagem das oportunidades de industrialização oferecidas pela maturidade das tecnologias de produção em massa.

A despeito das críticas válidas às políticas de proteção de mercados e substituição de importações, elas produziram ritmos elevados de crescimento e alto emprego, e continuamos a tentar reproduzir aquele período de bonança.

Mas essa janela de oportunidade da era da produção em massa já se fechou. Estamos lidando com condições mundiais muito diferentes, que requerem novas políticas, novas estratégias e novos comportamentos.

O mais sério "dinossauro" a superar é o conceito da "maldição" dos recursos naturais. A insistência em promover industrialização de forma a deixar para trás matérias-primas e agricultura era válida nos anos 1960 e 1970, quando, para lucrar com as tecnologias de então, imitar os países já industrializados era essencial.

Hoje, o contexto mundial está mudando da produção em massa para a especialização, com o crescimento de produtos agrícolas para nichos de mercado feitos sob medida e com biomateriais, nanotecnologia ou biotecnologia. Ao mesmo tempo, o consumo se volta para o "natural": rumo à agricultura orgânica e biotecnológica, e a outros recursos naturais com características únicas.

O que está por trás dessa transformação tão profunda? A transição de uma era enraizada nas tecnologias de produção em massa (incluindo o petróleo e seus derivados) para uma era de informação "inteligente" e tecnologias de comunicação que estão transformando todos os aspectos da sociedade, na direção de serviços e ativos intangíveis.

Não é que a produção em larga escala tenha deixado de ser realizada. Pelo contrário: a escala hoje precisa acomodar a classe média mundial emergente. Mas com a revolução da informação e da tecnologia "inteligente", duas coisas cruciais mudaram:

A linha de montagem pode produzir modelos diferentes e responder rapidamente a mudanças de demanda, sendo que a porção de produção em massa do mercado tem as mais baixas margens de lucro.

Ao mesmo tempo, a capacidade de atender a nichos de mercado e de produzir bens para esses nichos sem um investimento inicial proibitivo levou ao surgimento de segmentos menores mas mais lucrativos em todas as áreas.

Assim, quando o Brasil produz tanto polpa de eucalipto da mais alta qualidade mundial quanto um eucalipto de rápido crescimento cuja madeira se assemelha ao mogno, está criando oportunidades ao longo da cadeia de inovação, oportunidades muito mais lucrativas do que a simples montagem de produtos eletromecânicos desenvolvidos em outros países, ou a produção de produtos alimentícios enlatados de marca estrangeira.

EXPECTATIVAS

À medida que esse poder de transformação se espalha, as expectativas dos consumidores também mudam, o que cria um imenso potencial para a América Latina, rica em recursos naturais.

Hoje, o oposto daquilo que foi deflagrado pela produção em massa é que está em demanda: encontrar uma solução para a exportação de frutas "com gosto de fruta", em lugar das versões chochas, simétricas e duradouras da era da produção em massa; desenvolver safras altamente nutritivas; identificar virtudes medicinais de plantas pouco conhecidas -avanços científicos como esses podem abrir novos horizontes para empresas e inovadores locais.

Para além do estágio de pesquisa, vemos um aumento na inovação local de técnicas especializadas de extração e processamento, e de equipamento para exploração florestal, agricultura e pesca.

Um exemplo é o processo agrícola de plantio direto (sem lavoura) desenvolvido no Brasil e na Argentina, cujas máquinas agora são exportadas para todo o mundo.

A biotecnologia é outra área madura para inovação. Estão sendo identificadas e desenvolvidas bactérias para servir a muitos propósitos, de mineração ou digestão de petróleo derramado a aplicações de saúde como o "microbioma", que atende à cada vez maior demanda por cuidados médicos individualizados.

Todas essas mudanças estão acontecendo em meio a uma crise ambiental. Aprender a administrar recursos naturais -e a usá-los para criar riqueza, reduzir a pobreza e promover uma economia sustentável- é a tarefa mais urgente desta geração.

Tecnologia ecológica "inteligente" já está sendo desenvolvida em todo o continente, de novas fontes renováveis de energia à criação de materiais renováveis.

Mas priorizar soluções sustentáveis como parte de uma nova economia "verde inteligente" requererá um amplo consenso, com políticas públicas audazes e imaginativas que facilitem a transformação.

O que precisamos é abandonar o complexo de inferioridade sobre a inovação, adquirido na era da produção em massa, e encarar as novas oportunidades de maneira positiva e determinada.

CARLOTA PEREZ é pesquisadora, autora de "Technological Revolutions and Financial Capital" (ed. Edward Elgar) e professora da London School of Economics

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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