Folha de S. Paulo


Ensaio dos anos 1940 retrata e idealiza rotina de médico do interior dos EUA

W. Eugene Smith/Reprodução/Time
O paciente Thomas Mitchell, 85, recebe anestesia antes de ter um pé amputado
O paciente Thomas Mitchell, 85, recebe anestesia antes de ter um pé amputado

Um médico que ganha pouco, atua numa região inóspita e se vira para atender mais pacientes do que dá conta.

Poderia ser a rotina de um profissional hoje no interior do Brasil, mas é a vida do americano Ernest Guy Ceriani (1916-1988) na década de 1940, mostrada por W. Eugene Smith (1918-1978) em "Country Doctor", um dos mais importantes ensaios fotográficos do século 20.

Publicado em 1948 pela revista "Life" –as fotos podem ser vistas aqui – o trabalho mostra as dificuldades do médico para atender sozinho os 2 mil habitantes da comunidade de Kremmling, Colorado, no oeste dos EUA.

Por 23 dias, o fotógrafo acompanhou o dia-a-dia do clínico, testemunhando de terapia para dor de estômago a amputação de membros.

A perspectiva humanista e o uso da sequência de imagens para contar uma história tornou "Country Doctor" um dos ensaios mais influentes de seu tempo e ajudou a firmar Smith como um dos maiores do fotojornalismo.

"Já existia uma tradição de grandes reportagens, mas não dessa maneira", diz Rubens Fernandes Jr., professor de fotografia da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado). "A narrativa criada com fotos e pequenos textos e a intimidade que desenvolve com o médico são comoventes e mudaram o olhar de outros fotógrafos", analisa.

Dr. Ceriani é retratado como profissional incansável, que abriu mão de dinheiro e conforto para atender quem que de outro modo não teria acesso a assistência.

"Smith tinha grande respeito por profissionais da saúde: sua mulher era enfermeira e ele mesmo precisou de cuidados. Achava que eram as pessoas mais nobres", diz Sam Stephenson, seu biógrafo.

O trabalho foi o primeiro de Smith após cobrir a Segunda Guerra. Em uma batalha, aos 27, ele foi atingido por um disparo e passou dois anos entre hospitais e cirurgias. Recuperado, disse que queria mostrar "o oposto da guerra".

"Smith reflete o estado de espírito otimista do pós-guerra nos EUA, que não era fiel à realidade, mas era o discurso oficial", afirma Maura Spiegel, professora de estudos americanos da Universidade de Columbia.

Na opinião do professor de fotografia John Howard, do King's College de Londres, as fotos idealizam a figura de Ceriani e o oeste americano.

"'Country Doctor' nos diz mais sobre o saudosismo da vida dos leitores brancos e conservadores da 'Life' do que sobre a vida ou a medicina nos EUA depois da Segunda Guerra", afirma Howard. "Não há referência aos enormes desafios de tratar veteranos feridos ou a legião de jovens amputados. Não há nada sobre as disputas trabalhistas na região."


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