Folha de S. Paulo


Antigo Madame Satã faz 30 anos e vende até hambúrguer de chef

Há exatos 30 anos, em 20 de outubro de 1983, abriu na Conselheiro Ramalho, no centro paulistano, um muquifo que viraria lenda. Ocupando um casarão dos anos 1930 já então bem sambado, o Madame Satã não tinha sofá, ar-condicionado nem alvará. O som era tosco, e a pista, um socavão escuro e cheio de baratas.

Mas não havia lugar melhor para ter 20 anos e viver o surto anárquico e criativo que começou a espantar o ranço da ditadura no meio dos 1980.

A graça era o som pós-punk e new wave do porão e a programação frenética de música, arte e performances ao vivo, que ia de RPM e Legião Urbana a Itamar Assumpção e Cida Moreira, passando por sessões de filmes do Primo Carbonari exibidos de trás para frente e pela famosa "mulher do repolho", uma amalucada que o ex-seminarista Wilson José, mentor do clube, trancava numa jaula e alimentava com o legume, à guisa de espetáculo.

Editoria de Arte

Ir para a noite montado era outra diversão que nascia entre os punks, carecas, travecas e "darks" que se apinhavam, noite após noite, no salão ao rés da rua, no quintal de chão batido e pelas escadas estreitas da casa.

"Com 14 anos, eu tinha cabelo azul e era o mascote", lembra o então assíduo Heitor Werneck, 46.

O futuro estilista da Escola de Divinos saía de vestido. Fora isso, era pura inocência: "Achava que 'travesti' era um estilo musical".

"O Satã oferecia a liberdade de expressão que a juventude pós-ditadura precisava", teoriza Marcelo Leite, 43, autor de "Madame Satã - O Templo Underground dos Anos 80".

No folclore reunido pelo livro, consta que Ney Matogrosso descobriu lá o RPM, a quem apresentaria ao empresário Manoel Polladian; que Erasmo Carlos, numa bela noite, entrou despercebido e encantou o punk Crânio com suas histórias; e que Lulu Santos, ao aparecer de limusine, foi sumariamente barrado no baile.

A casa fechou em 1989 deixando tanta saudade que, mesmo depois da morte de Wilson José, em 1992, houve quem tentasse reavivá-la.

Nos anos 1990, virou o clube gótico Morcegóvia. Em 2011, os sócios Gé Rodrigues e Igor Calmona reabriram o casarão com itens de segurança, hamburgueria e potência sonora. "Isso
aqui é um templo", diz Rodrigues. "Vem gente de fora de SP conhecer."

O Satã virou Madame e quer viver do passado. "Toco quase a mesma coisa que há 30 anos", diz Magal, veterano nas picapes. "Mas a frequência é outra. Antes as pessoas eram mais criativas, tinham mais atitude".

Werneck concorda. "Quem curte a noite hoje só usa jeans e camiseta de banda. Acabou o glamour."


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