Folha de S. Paulo


Saldão de apartamentos que podem superar R$ 1 mi dá café e pizza para madrugadores

Mais de 50 desconhecidos estão num auditório. Alguns deles, há 48 horas. Ninguém pode sair do cômodo, com cadeiras de estofado, a não ser para ir ao banheiro. Devem se virar para dormir com cobertores entregues na entrada --faz 6°C lá fora. O ar rescende a pizza, batata frita e chulé.

Ouve-se uma sinfonia de roncos.

Poderia ser uma cena do filme "O Anjo Exterminador" (1962), de Luis Buñuel, sobre convidados impedidos (por nenhum motivo aparente) de deixar o cômodo de uma mansão.

São clientes à espera do feirão da imobiliária Even, com apartamentos de mais de R$ 1 milhão com desconto de até 40%, dois domingos atrás.

O evento, que atraiu mais de 2.000 pessoas, começa às 6h30. O organizador chama, num microfone, os interessados, por ordem de chegada. Eles formam uma fila indiana, que se estende pelo lado de fora do prédio da Even, na marginal Pinheiros.

Nas duas edições anteriores, quem chegasse com antecedência esperava lá fora. Alguns traziam barracas de acampar. Mas, por conta do frio, o auditório foi liberado como alojamento.

A enfermeira Ana Claudia Udoni, 43, está plantada desde sexta à noite. "Depois do sono da casa própria, vem o sonho da casa própria."

Ao ter seu nome anunciado, o competidor recebe um "boa sorte" em coro de colegas que ficaram no limbo da espera e das embalagens de McDonald's.

O administrador Paulo César Ortali, 45, chegou "cedinho no sábado, porque sei que só tem um do que eu quero à venda". O imóvel se chama Incontro Mooca --assim, com "i" mesmo-- e inclui churrasqueira "gourmet", "music lounge" e sala de ioga.

Cada apartamento, de três ou quatro quartos, soma 140 m². O preço original: mais de R$ 1 milhão (o desconto superaria R$ 400 mil). "Por esse dinheiro, durmo até na rua", brinca (ou não) Paulo César.

A arquiteta Cristina Romaro, 45, e a engenheira Alessandra Costa, 37, queriam as quitinetes de R$ 629 mil (R$ 500 mil, com abatimento) do prédio NY SP, no Brooklin (zona sul).

O anúncio prometia "a atmosfera de Nova York em São Paulo". Cristina vê outra realidade. "Está muito caro comprar apartamento na cidade. Mais do que em NY, se bobear."

Se o mercado está aquecido, de onde vêm os imóveis no saldão? A maioria foi dada como vendida no lançamento do edifício, mas voltou a ficar sem dono por problemas de financiamento. E acabou na liquidação.

O QUE VIER É LUCRO

Após os dias de espera, em que a empresa servia pizza, café e sanduíche, o desfecho era rápido. Um homem que se identificou só como Silvio arrematou uma sala comercial na rua Oscar Freire. O alvo inicial era um apartamento na Bela Cintra. "Mas tinham levado. Acabei comprando isso mesmo. Talvez me arrependa."

"Vivemos que nem sem-teto por dois dias para conseguir um teto", afirma uma atriz de 76 anos que come um pacote de Doritos no café da manhã.

Para o grupo, foi o fim de uma maratona que lembra outro filme: "A Noite dos Desesperados" (1969), de Sydney Pollack, no qual uma competição premiava os dançarinos que resistissem mais tempo na pista.

"E quer saber?", diz duas horas depois a senhora, que em vez do salgadinho carrega agora o contrato do novo lar --R$ 210 mil mais leve do que o preço original. "Valeu a dor no ciático que vou ter no resto da semana."


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