Folha de S. Paulo


Conheça os açougueiros por trás dos principais pratos de SP

A camisa e a calça social bem alinhadas não denunciam a vida dupla de Ricardo Sechis, 61. Há 40 anos, ele trabalha como engenheiro, mas o maior elogio profissional que já ouviu foi de um chef de cozinha. Açougueiro na adolescência e produtor de gado nobre há mais de 20 anos, ele é atualmente um dos fornecedores de Alex Atala.

Seus cortes ocupam as mesas do restaurante D.O.M., eleito o sexto melhor do mundo pela revista britânica Restaurant, ao lado das peças suínas de José Gaspar, 45, do Porco Feliz, e das carnes exóticas de Gonzalo Barquero, 34, da marca Cerrado.

Junto de Nei Rodrigues, 39, que trabalha na marca Bonsmara Beef, eles formam o grupo de açougueiros mais badalados pelos principais chefs da cidade.

Os quatro passaram a ser conhecidos nos anos 2000, em um mercado antes centrado nos churrasqueiros e empresários Marcos Bassi (morto em março) e István Wessel e em Sylvio Lazzarini, dono da distribuidora Intermezzo Gourmet.

Além de pratos de restaurantes como Arturito, Attimo, D.O.M., Fasano, Vito e Sal, eles compartilham preocupações como genética e a diminuição do estresse dos animais.

O sucesso nos restaurantes os coloca no radar do consumidor final e, com butiques de carne, eles agradam principalmente aqueles que gostam de testar receitas ou reproduzir os pratos dos chefs em casa.

VERGONHA ALHEIA

José Gaspar, do Porco Feliz, percebeu que precisava se diferenciar dos concorrentes já no início de sua carreira, há 31 anos. O mais novo de três filhos de um açougueiro da zona norte, ele herdou o negócio do irmão quando tinha apenas 14 anos.

"Comandava 15 funcionários e tive que deixar a escola", conta. "Nos dois primeiros anos, dei cabeçada, mas depois peguei a manha e comecei a aperfeiçoar o corte dos suínos, deixando menos gordura", diz ele, que comprou o box Porco Feliz no Mercadão há dez anos e passou a vender carnes exóticas.

O sucesso, no entanto, só veio depois que ele perdeu a vergonha da alcunha do box, escolhida pelo dono anterior, um palmeirense: "As pessoas riam e isso me incomodava. Escondi o nome com um plástico durante um ano. Depois acostumei".

A excentricidade do nome e dos produtos fizeram correr a fama do Porco Feliz. "Um ano depois que abri, veio o boom da gastronomia", diz Gaspar. "O primeiro chef que virou cliente foi o Olivier Anquier. Aí cresceu a demanda, porque eles sempre falam onde compram."

Mesmo sendo o dono do próprio negócio, Gaspar é açougueiro em tempo integral. Sua jornada de trabalho começa às 4h30, quando sai de casa, no bairro de Santana, zona norte, já vestido com o seu jaleco.

Ele só deixa o açougue no Mercadão 12 horas depois e chega em casa com a mesma roupa. "Ninguém me reconhece sem ela. Parece sina de açougueiro", ri, contando que a última moda entre seus clientes é pedir o corte da costela de porco "igual a do Outback".

Os horários e a rotina de Gaspar são parecidos com a da maioria dos profissionais da área, que ganham entre R$ 1.800 e R$ 2.000.

Um deles é Nei Rodrigues, 39, que tem sua biografia marcada pela faca. Desde 1997, ele transita entre frigoríficos e açougues da cidade.

Nascido em Campo do Buriti, no Piauí, veio "sem destino" para São Paulo e ingressou na produção de bacon, linguiças e salsichas, onde conheceu a mulher, Márcia.

A marmita, que era divida pelos dois, rendeu um namoro e o filho que o casal tem hoje, de seis anos. "Consegui minha casa e tudo o que eu tenho com essa profissão. Só não quero voltar a trabalhar em açougue de rua para ter de lavar bandejas às 21h", diz ele, que é um dos mais experientes no setor de cortes do frigorífico da Bonsmara.

ENGENHEIRO NO PASTO

O açougue tradicional de rua também é parte do passado de Ricardo Sechis. De Brasília, onde mora, ele tenta conciliar a rotina de projetos de engenharia com a paixão pelas carnes. Há três anos o sentimento é materializado na marca Beef Passion, que oferece carnes em 62 cortes diferentes, investe em exportação de sêmen de gado do Japão e estudos em parcerias com universidades para melhorar a genética dos animais.

Hoje, Ricardo vem a São Paulo a cada 15 dias e pode ser encontrado no espaço conceitual da marca, recém-inaugurado em Higienópolis, na região central.

O cliente que chega ali se depara com uma loja de decoração. Mas, no andar inferior, no lugar dos ganchos e balanças dos açougues tradicionais, encontra um ambiente com churrasqueira, mesas, cadeiras e armários de madeira.

Antes de escolher uma peça em uma das discretas geladeiras, o visitante pode degustar um pedaço de acém ou patinho, grelhados na hora.

"A ideia é explicar o produto. Já me considero mais açougueiro do que engenheiro. Fui vendo as diferenças que fazem a genética e a maneira como o animal é tratado", conta Sechis. "Já até penso em largar o escritório."

O esforço em pesquisa dos produtores que investem em carnes especiais faz com que esses bois custem até três vezes mais do que a média do mercado, com o benefício de propiciar um aproveitamento maior de todas as suas partes.

Para Alex Atala, isso possibilita fugir da comodidade de um mercado que consume apenas cortes tradicionais. "A qualidade não começa na cozinha, mas na seleção das raças, na engorda do animal. Um bom chef consegue usar cortes alternativos e mostrar a utilidade de outros pedaços", diz ele, que trabalha com carnes como coxão duro e pescoço. "Num animal desses não existe corte de segunda porque todas as partes são boas", afirma o chef André Mifano, do restaurante Vito.

Fã de porco, ele usa a carne bovina da Beef Passion há dois meses, após uma indicação de Atala. "É um acém que custa mais, mas que é melhor do que uma picanha comum." Sechis tem a experiência de açougueiro marcada em ao menos 12 cicatrizes nas mãos e não perde uma oportunidade de falar sobre carne.

"Tempero meu boi no pasto" e "Essa carne, mesmo crua, não tem gosto de sangue" são frases essenciais em suas conversas. "Meu negócio é saber até onde posso chegar com o aprimoramento dos animais", diz ele, que frequenta todos os restaurantes que são seus clientes.

PERFIL UNIVERSITÁRIO

Outro empresário e estudioso do assunto é Gonzalo Barquero, que se formou em ciências animais, curso que mistura disciplinas de biologia, zootecnia e veterinária, numa universidade dos Estados Unidos. Ele tem seu nicho: vende só para o atacado e trabalha apenas com animais pouco usados no Brasil, como capivara, paca e javali.

Filho de um produtor da Costa Rica, Barquero controla desde a alimentação dos animais até o abate, os cortes e a embalagem das carnes. Atualmente, trabalha para chegar a um ideal de um frango e de um porco, os dois caipiras.

Os testes duram até um ano e incluem observações na alteração da carne a partir do que o animal come e de como é criado. "Começo, por exemplo, pensando em que porco usar, deixo ele solto e vejo no que dá, se falta gordura, se o sabor está forte ou não."

Apesar de não vender no varejo, mas distribuir para supermercados e fornecer para o Porco Feliz, ele planeja uma loja para chamar de sua e ter, assim, um local para explicar seus produtos. "Tem aumentado a procura do consumidor final por essas carnes", diz. "Mas falta conhecimento do que são esses animais, qual é o seu sabor e como eles são preparados."

CHURRASCADA

Para o professor de gastronomia do Centro Universitário Senac Lucas Medina, a variedade na oferta e na qualidade faz com que haja espaço para esse tipo de comércio em um setor hoje dominado por açougues de supermercados.

"A popularização de cortes e de carnes diferenciadas é um reflexo da expansão da cultura gastronômica nos últimos anos", diz. "Hoje as pessoas viajam e querem ter aqui o que comeram lá fora."

Segundo o presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Carnes Frescas do Estado de São Paulo, Manuel Henrique Farias Ramos, a boa relação entre os chefs e o açougue tem sido importante para a valorização da profissão. "Se os chefs se popularizam, isso traz respaldo para os açougueiros", afirma.

Aberta em janeiro do ano passado, a butique de carnes No Ponto, em Moema, região sul, recebe muitos clientes que estudam gastronomia como hobby e gostam de testar carnes especiais. No próximo mês, o espaço entra em reforma e vai quase dobrar de tamanho, passando de 45 para 80 metros quadrados.

"Queremos vender carnes exóticas, como pato, javali, coelho, avestruz. O pessoal pede muito", conta Dárcio Lazzarini, 28, entre as prateleiras com cervejas e vinhos importados, facas e até sorvetes.

A experiência bem-sucedida concretizou a ideia de Sylvio Lazzarini, pai de Dárcio, de ter uma butique de carnes da sua empresa, a Intermezzo. A loja em frente ao restaurante Varanda Grill, do qual também é dono, foi aberta em dezembro do ano passado.

Presidente do sindicato do setor, Manuel Ramos diz que os açougueiros em geral se modernizaram para enfrentar os supermercados. A entidade estima que hoje existam 2.800 açougues na cidade."Antes o dono de açougue só cortava a carne, hoje ele é empresário."

No encontro entre os quatro açougueiros para as fotos da reportagem, cada um levou suas ferramentas. As opiniões sobre as facas, uniformes e o ponto ideal da carne, bem ou mal passado, dominaram a sala. A carne, que era para ser cenográfica, não escapou da panela.

INSPIRAÇÃO DA CAPA

Famosa entre os fãs da banda, a famigerada capa de "Yesterday and Today"­ -com os Beatles vestidos de açougueiros, acompanhados de pedaços de carne e cabeças de bonecas- foi motivo de gritaria em junho de 1966, quando lançada nos Estados Unidos.

A reação dos vendedores de discos foi tão negativa que a Capitol Records recolheu 750 mil cópias e colou uma nova fotografia em cima para reenviá-las aos distribuidores.

Paul McCartney disse que a foto, de Robert Whitaker, era uma crítica à guerra do Vietnã.

O lançamento, criado para o mercado norte-americano, reunia duas faixas do LP "Help!" (1965), quatro de "Rubber Soul" (1966), três de "Revolver" (1966) e os dois lados do compacto "Day Tripper"/"We Can Work It Out".


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