Folha de S. Paulo


Comerciantes da Augusta usam táticas para resistir à compra de terrenos

Se existe um ponto de referência antigo na rua Augusta, sentido Centro, ele responde pelo nome de Robert Plas. Enquanto a tradicional padaria Bologna, no número 379, tem 84 anos de vida, Plas tem 86 e dedicou quase todos eles à chapelaria que leva seu sobrenome, no 724, quase na esquina com a rua Dona Antônia de Queirós.

E por lá ele pretende ficar. "Não vou sair da Augusta, por mais que quase todos os meus vizinhos tenham partido." Robert admite que sobreviveu no lugar, em parte, por sorte. O dono do imóvel é da família Filizola (a mesma das balanças) e "faz um preço que foge do absurdo", classifica. Mas o seguro morreu de velho, ele mesmo afirma, e por isso a loja tentará outra maneira de sobreviver.

Os filhos Robert, 48, e Maurice, 46, entrarão no mês que vem com um dossiê pedindo o tombamento imaterial da loja no Conpresp (conselho municipal de preservação do patrimônio histórico).

A peça vai se basear na jurisprudência da Casa Godinho, empório de secos e molhados na rua Libero Badaró. O armazém teve sua atividade tombada em janeiro por ser "referência na memória afetiva" do paulistano. "Vai evitar que a gente vire história", diz Robert pai.

Por mais que nenhum outro comerciante desse lado da Augusta cogite pedir tombamento, muitos estão dando um jeito de não terem seus negócios tombados pela expansão imobiliária.

BONECAS EM FALTA

É o caso do Camarim das Bonecas, que vai mudar de nome justamente nesta semana. Em vez de fazer menção aos travestis e transexuais (apelidados de "bonecas"), que por 14 anos formaram o grosso da clientela do salão de beleza, no imóvel 473, o nome será Camarim Beauty.

"O movimento caiu bastante. Mas ao mesmo tempo surgiu um novo público, de homens e de mulheres que nasceram mulheres que procuram pelo serviço", diz Zélia Matos, dona do salão.

O reposicionamento de mercado virá acompanhado de novidades como massagem. "Entrei nesse imóvel pagando R$ 400 de aluguel. Hoje, custa R$ 1.800. Preciso pagar isso no fim do mês de algum jeito."

No dia em que a sãopaulo visitou o salão, a modelo transexual Paula Top, 26, dividia harmoniosamente o bronzeamento artificial com o dançarino Uelinton Rodrigues, 23. "Aqui, não tem sexo", diz Top.

Mas na Mila Modas, no mesmo quarteirão, tem. "E sexo vende", reafirma a dona, Mila Tassinari, 54. Ela abriu a loja 20 anos atrás para vestir exclusivamente mulheres chiques. "Fazia camisa, terninho, calça de alfaiataria. Tive pouca venda." Trocou então a clientela que trabalhava no fórum pela que trabalhava na rua.

"Entrei no ramo da moda exótica", diz Mila, usando o jargão da Augusta para macaquinhos de laicra e biquínis que são usados na noite de cidade. "Hoje tenho clientes que trabalham na cidade toda, mas vêm comprar aqui. E ainda chamam de vida fácil? Só me mantenho trabalhando 12 horas por dia", diz Mila.

Ou até mais. O sex shop do número 510 fica aberto "quase 24 horas por dia", dizem seus funcionários. "Não temos planos de sair. Ficaremos por aqui e com a mesma aparência", diz a dona, que pede anonimato.

Ela, que é proprietário de um prédio de três andares ao lado da loja de apetrechos picantes, diz já ter negado uma proposta de R$ 3 milhões pelo conjunto. "Eu gosto daqui e da cara da loja. A Augusta pede um ar brega. Brega não: rústico."

O chaveiro José Carlos Barbosa, 47 anos e ocupando o número 711, diz que o tamanho fez a diferença em sua sobrevivência. "É um imóvel pequenininho demais, não conseguiriam alugar essa portinha para mais ninguém", diz ele, há 24 anos na Augusta. Mas o negócio não vai bem. "Antes, o pessoal chegava bêbado em casa, quebrava a chave na porta e vinha correndo para cá. Agora, acontece bem menos."

Até porque duas das casas noturnas mais famosas do trecho, o Studio SP (ex-591) e o Vegas (ex-765), fecharam as portas recentemente. Os donos botaram a culpa na especulação imobiliária que elevou alugueis.

"Os dois espaços ainda estão vazios. Não vai ser fácil achar alguém que pague o que estão pedindo", diz Marcos Idiliane, corretor na região. "Se bem que devem pagar. Tudo aqui tá vendendo, a qualquer preço."

EXU TRANCA RUA

O terreiro do pai Amaro de Ogun está silencioso. Depois de 20 anos tocando atabaques para receber orixás no número 899, Amaro cessou nesta semana os trabalhos na rua Augusta. Irá para o Rio Pequeno, na zona oeste. "Não queria ir, mas venderam o prédio onde eu moro e trabalho. Ou trabalhava."

E a perda vem em dupla: a academia de ginástica de Ray Soares, 64, sua namorada, também virá abaixo para dar lugar ao prédio. "Agora que ela estava bonitinha, vou ter que sair." Ela ocupa o ponto do 879 desde 1997. De início, tocava uma tapeçaria. "Mas há alguns anos anos, percebi que corpo dava mais dinheiro e abri a academia." Foi o jeito de pagar os R$ 2.800 de aluguel do lugar, que agora vai ao chão junto com um salão de beleza e uma antiga boate.

Da casa vazia do casal, dá para ver o prédio erigido do outro lado da rua, mas que dá costas para a Augusta e só é acessível pela rua Bela Cintra. O metro quadrado dos apartamentos saiu por R$ 14.000. É mais do que a Vila Nova Conceição, classificada pelo Secovi como bairro mais caro da cidade, com um metro quadrado médio de R$ 11.000.

"É assim que funciona. O lugar fica bom e quem morava lá não é bom o suficiente para ficar. A gente toca para outro lugar", diz pai Amaro, embalando o trono de Exu que usava nos rituais. "Se nem o Exu, que é o orixá das ruas, pôde me ajudar, acho que o caso da Augusta é grave."


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