Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Santa foi associada à cor negra de maneira lenta e gradual

Devotos do século 21 muito provavelmente não conseguiriam imaginar uma Nossa Senhora Aparecida que não tenha pele negra, mas o fato é que a santa só adquiriu suas feições atuais graças a uma metamorfose lenta e gradual.

Essa transformação, aliás, pode ser vista como um microcosmo dos últimos séculos de história brasileira, da derrocada do Império à ascensão de vertentes católicas de esquerda durante o regime militar.

"A questão da negritude passa batida nos documentos oficiais mais antigos sobre a santa", explica Lourival dos Santos, historiador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e autor do e-book "O Enegrecimento da Padroeira do Brasil" (editora Pontocom).

"Fala-se numa imagem de barro 'acastanhado', por exemplo", diz. Um cronista dos jesuítas, escrevendo em meados do século 18, chega a comentar: "A imagem é de cor escura, mas afamada pelos seus muitos milagres".

Segundo a escultora e restauradora Maria Helena Chartuni, responsável por reconstruir a imagem original da padroeira depois que ela se esfacelou em cerca de 200 pedaços em 1978, após ser roubada por um jovem com problemas mentais, é quase certo que a estatueta de terracota tenha sido originalmente recoberta com gesso e pintura policrômica, ressaltando detalhes como o manto azul.

"Seria uma imagem de Nossa Senhora da Conceição do século 17, típica do barroco tardio do Brasil", afirma.

O tempo que a imagem passou debaixo d'água, antes de ser retirada do rio Paraíba do Sul por pescadores, bem como as primeiras décadas de devoção popular, durante as quais ela teria ficado bastante exposta à fuligem de velas e candeeiros, provavelmente conspiraram para que a santa ganhasse sua aparência atual, dizem os especialistas.

No recém-lançado "Nossa Senhora Aparecida e o Papa Francisco" (Planeta), os cardeais dom Cláudio Hummes e dom Raymundo Damasceno também mencionam esses fatores para explicar a aparência escura de Aparecida.

Lalo de Almeida/Folhapress
Aparecida, SP. 03/10/2017. Fieis participam de novena no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida. ( Foto: Lalo de Almeida ) PODER ***EXCLUSIVO FOLHA***
Fieis participam de novena no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em São Paulo

A PRINCESA E O GAÚCHO

Mais importante do que esse escurecimento físico, no entanto, é o "enegrecimento simbólico" da santa, diz Santos. Com efeito, até o século 19, estampas produzidas sob os auspícios da Igreja Católica ainda a retratam como branca. Um dos elementos que parece ter ajudado a mudar esse quadro é a ligação de Nossa Senhora Aparecida com a princesa Isabel, filha do imperador Dom Pedro 2º que oficializou o fim da escravidão no Brasil.

A princesa prestou homenagens à santa em duas ocasiões (1868 e 1884), visitando a capela onde estava abrigada na época. Em 1904, uma década e meia depois do fim do Império, o padre Gebardo Wiggerman organizou uma coroação solene da padroeira na qual foi usada uma coroa que teria sido doada pela princesa deposta, já então consagrada como libertadora dos escravos e muito querida pela população negra. Isso teria fortalecido a associação entre a padroeira e os fiéis de origem africana.

O governo Getúlio Vargas deu um passo mais decidido nesse sentido. Na inauguração do Cristo Redentor, em 1931, o presidente gaúcho beijou os pés de uma imagem santa, que foi declarada oficialmente Padroeira do Brasil com o beneplácito do papa Pio 11.

Vargas também restringiu a chegada de imigrantes europeus ao Brasil, estimulada por décadas como mecanismo necessário para "branquear" a população, segundo as teses racistas da época, e a patrocinar uma visão mais positiva sobre os elementos negros e mestiços da identidade brasileira.

"A identificação dos devotos negros com a santa agora considerada negra pode ser vista como uma tentativa de inclusão dessa parcela da população numa comunidade nacional", diz Santos. "Você cria um novo ícone da brasilidade ligado a esse lado africano, assim como outros ícones do tipo estão se consolidando nessa época, como o samba."

Nos anos 1970 e 1980, com o surgimento de uma pastoral afrobrasileira na Igreja Católica, ligada ao movimento da Teologia da Libertação, a faceta africana de Aparecida foi incorporada à própria liturgia do catolicismo.

"Ela reflete, em muitos aspectos, a ambiguidade da nossa identidade racial, ao gosto do devoto: há quem enfatize ou não a negritude ao falar dela", diz Santos.


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