Folha de S. Paulo


Miller disse a delatores que acordo nos EUA é 'mais experiente e rigoroso'

Mauro Pimentel/Folhapress
Ex-procurador Marcello Miller na sede da Procuradoria Regional da República da 2ª Região, no centro Rio, onde vai prestar depoimento
Ex-procurador Marcello Miller na sede da Procuradoria no centro Rio, na última semana

Em mensagem encontrada no celular de Wesley Batista, o ex-procurador Marcello Miller diz que o sistema de colaboração nos Estados Unidos "é mais experiente e muito mais rigoroso" do que no Brasil e que "o jogo lá é diferente".

Segundo a Polícia Federal, essa teria sido a única mensagem enviada por Miller para um grupo de Whatsapp criado no dia 31 de março.

Faziam parte do grupo: os irmãos Wesley Batista e Joesley Batista, Francisco de Assis e Silva, advogado e delator, Fernanda Tórtima, advogada, Miller e Ricardo Saud, delator.

A PF diz que o ex-procurador teve "o cuidado de se manifestar no grupo somente no dia 4 de abril, último dia dele de trabalho no Ministério Público. Contudo, o teor de sua mensagem revela que ele ainda na posição de procurador já estava atuando nos interesses do grupo JBS".

Miller termina sua mensagem dizendo "estou às ordens".

Como dica, o ex-procurador orienta que o acordo da JBS nos EUA deveria evitar a inclusão de um "monitor", como aconteceu no caso da Odebrecht.

Ele define que o monitor "é basicamente um interventor, só que pago pela própria empresa: é um profissional local (brasileiro) escolhido pelas autoridades americanas para fuçar todos os procedimentos de compliance da empresa e fazer uma espécie de auditoria da investigação. Espero que estejamos na mesma página".

A JBS fechou dois acordos, o de delação, que envolve pessoas físicas, e o de leniência, que funciona como uma espécie de colaboração da pessoa jurídica.

PAGAMENTOS

A suspeita da PF é de que houve o crime de corrupção passiva e ativa por parte dos colaboradores e de Miller, "consistente no recebimento de vantagem ilícita ou promessa de vantagem".

"O que se observa é que grande parte dessa 'consultoria' foi realizada ainda no serviço da função pública", diz a polícia em relatório.

A PF destaca ainda uma troca de mensagens entre Wesley e Joesley depois que o primeiro se reuniu com Miller no aeroporto do Galeão, no Rio, antes de o ex-procurador embarcar para os EUA para negociar a leniência do grupo.

No diálogo, aponta a polícia, eles tratam sobre pagamentos ao ex-procurador.

Segundo documentos do escritório Trench Rossi Watanabe, no qual Miller trabalhou por menos de três meses oficialmente, foi firmado um contrato com a JBS no dia 6 de março.

As mensagens, de abril, tratam de dinheiro para o ex-procurador e usam o termo "ações". Não fica claro qual seria a operação financeira oferecida.

Wesley escreveu: "Falei com ele [Miller], mas ele deu assim: não tive tempo de pensar, me dá uma semana aí. Achei ele um pouco menos empolgado. Ele falou: É, tal, tem que ver. Resumo, ficou assim mesmo. Eu falei, pensa, não falei de valores, mas falei: porra, pensa, acho que você pode ter uma oportunidade muito boa. Logicamente nós estamos em um momento que precisamos virar uma página aí, eu acho que a gente pode te oferecer uma coisa porra, que te dá aí uma, um "raging bônus" bacana, não falei valor. E falei: porra, podemos te oferecer um negócio aí que você põe "skin on the game" em ações e tal, se você ajudar nós a atravessar essa tempestade aí. Em resumo, você pode ter oportunidade de fazer um negócio relevante para você, tal. Falei assim. Ele falou: não, beleza. Aí ele deu uma, abriu o olho mais, falou, não, beleza, deixa eu pensar aí, semana que vem a gente fala. Então, vamos ver".

A JBS é acusada de se beneficiar da compra de dólares e com a venda de ações da JBS, aproveitando-se do impacto no mercado de seu acordo de delação premiada.

OUTRO LADO

Em nota, o ex-procurador Marcello Miller afirmou que "repudia veementemente as insinuações e ilações feitas com base no conteúdo das gravações e mensagens divulgadas na imprensa".

O comunicado diz que "a defesa está esclarecendo o sentido e o contexto a todas as referências ao nome de Miller".

O ex-procrador afirmou mais muma vez que "jamais fez jogo duplo e que não tinha contato com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, nem se aproveitou de informações sigilosas de que teve conhecimento enquanto procurador". Destacou que não atuou na Lava Jato desde outubro de 2016, nem na operação Greenfield ou no Ministério Público no Distrito Federal.

Miller disse que não atuou em investigações ou processos relativos à JBS e não buscou informações nos bancos de dados do Ministério Público Federal e que pediu exoneração em fevereiro de 2017 "tendo essa informação circulado imediatamente no MPF".

A JBS, por sua vez, disse que não vai se pronunciar.

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Veja a íntegra do que disse o ex-procurador no grupo, como consta em relatório da polícia:

"Meus caros, só quero recapitular aqui a outra ponta, a dos EUA. Amanhã vou para lá para ver o que arrumo. O jogo lá é diferente. É um sistema mais experiente e muito rigoroso. Ontem eu falei por telefone com os procuradores americanos, inclusive com o chefe da unidade de FCPA, para testar a temperatura. Ficou claro que é muito importante que o MPF sinalize para o DOJ que tem interesse especial nessas tratativas, para não cairmos na vala comum de ter de fazer toda a investigação interna ANTES de um acordo. Se o MPF der esse sinal com clareza, a gente pode - não é garantido mas pode - conseguir bastante mais velocidade. Para isso, teremos de assumir no acordo a obrigação de investigar e ir apresentando os resultados para o DOJ e a SEC, disso não há dúvida. É o que eles chamam de remediation (que não se confunde com multa; remediation é mostrar disposição para agir de outro modo no futuro), e a remediation é uma exigência legal da estrutura de acordos lá nos EUA. Nosso maior desafio é evitar a imposição de um monitor, que Embraer e Odebrecht tiveram de aceitar: ambas estão sob monitoramento. O monitor - acho que vcs sabem, mas não custa lembrar - é, basicamente, um interventor, só que pago pela própria empresa: é um profissional local (brasileiro) escolhido pelas autoridades americanas para fuçar todos os procedimentos de compliance da empresa e fazer uma espécie de "auditoria da investigação". Espero que estejamos na mesma página. Se quiserem falar ou tirar alguma dúvida, estou às ordens".


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