Folha de S. Paulo


Um mês após morte de sem-terras no PA, vítimas de conflito agrário migram

Com enxadas nas mãos, eles fincam pedaços de madeira no chão e erguem as lonas pretas em Pau d'Arco (867 km ao sul de Belém).

Um mês após a ação conjunta das polícias Militar e Civil do Pará que resultou em dez mortos, camponeses tentam retomar a vida e a reivindicação da posse da fazenda com a construção de um novo assentamento.

O caso de Pau d'Arco foi o episódio de disputa agrária mais violento desde Eldorado dos Carajás, também no Pará, em 1996. A polícia afirma que houve um confronto entre com os camponeses e troca de tiros -hipótese descartada pelo Ministério Público do Pará.

O novo acampamento foi montado há dez dias em um terreno ao lado da Fazenda Santa Lúcia, terra onde ficava o antigo assentamento que motivou o conflito entre fazendeiros e pequenos agricultores da região.

Cerca de cem pessoas, entre trabalhadores rurais e familiares das vítimas estão no assentamento, montado com apoio da Liga dos Camponeses Pobres. No local, foram estendidas faixas que pedem o "fim da violência no campo" e o "fim da criminalização da luta pela terra".

Mesmo com a iniciativa de retomada da disputa pela terra, entidades que acompanham a situação dos camponeses relatam um clima de tensão e de medo entre os trabalhadores rurais de Pau d'Arco.

A Folha tentou falar com alguns dos trabalhadores que migraram para o novo assentamento, mas eles preferiram não dar entrevistas por medo de retaliações. Parentes das vítimas defendem a retomada da disputa pela terra.

"Tem que continuar. A maioria das pessoas só querem trabalhar. Estão lá [no assentamento] porque não têm emprego nem um pedaço de terra para plantar", afirma Verônica Pereira Milhomem, 54, que perdeu dois filhos, dois irmãos e uma enteada no massacre.

Além da situação em Pau d'Arco, entidades temem a eclosão de novos conflitos na região. Segundo levantamento da CPT (Comissão Pastoral da Terra), existem 160 fazendas tomadas por diferentes entidades de sem-terra no sul e sudeste do Pará.

"É uma área complicada do ponto de vista da disputa agrária. O agronegócio tem uma força muito grande, o que coloca em situação de fragilidade os camponeses e movimentos sociais", afirma José Batista, advogado da CPT.

Sandra Carvalho, da ONG Justiça Global, afirma que assassinatos de líderes têm sido constantes na região.

'FOI UM CERCO'

As mortes em Pau d'Arco ocorreram na manhã de 24 de maio após um grupo de 29 policiais ter ido ao assentamento cumprir três mandados de prisão de camponeses suspeitos de matar um segurança da fazenda.

O caso está analisado em quatro frentes de investigação: Ministério Público, Polícia Civil, Polícia Federal e corregedorias das polícias Civil e Militar. Nenhum dos inquéritos foi concluído.
O Ministério Público do Estado, contudo, já descarta a tese de confronto.

"O que houve foi um cerco, os camponeses foram executados. Não temos dúvida disso", afirma Alfredo Amorim, um dos quatro promotores que acompanham o caso.

Ele aponta que, além de não haver nenhum baleado entre os policiais que participaram da operação, não há marca das de tiros nos veículos dos policiais. Também afirma que dois seguranças particulares da fazenda participaram da operação policial de forma irregular.

Sem dar mais detalhes sobre as investigações em curso, Polícia Civil e Polícia Federal planejam realizar reconstituições da operação, com a participação de cerca de 80 pessoas.

A Polícia Civil informou que ouviu cerca de 50 pessoas entre policiais, testemunhas e sobreviventes. O delegado Aurélio Paiva, à frente do inquérito estadual, também pediu reconstituição do massacre.

A Secretaria de Segurança, porém, afirmou que o procedimento não pode ser realizado no momento, uma vez que a "área foi reocupada por pessoas ligadas aos invasores que estavam acampados na propriedade rural".

A Polícia Miliar informou que não se pronunciará até a conclusão das investigações. Os 21 PMs e oito policiais civis envolvidos no caso foram afastados de suas atividades.

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INDENIZAÇÃO

A cozinheira Verônica Pereira Milhomem, moradora de Redenção, cidade vizinha ao Pau d'Arco, diz que vai pleitear uma indenização do Estado.

"Não tenho vontade de viver, não tenho vontade de levantar. Queria estar perto dos meus filhos", afirmou Verônica, entre soluços, em conversa com a Folha.

Ela enfrenta, simultaneamente, a dor da perda dos filhos, as dificuldades financeiras de quem dependia deles para sustentar a casa, além da saúde frágil –um problema renal a obriga fazer hemodiálise quatro vezes por semana.

Wclebson Milhomem, 32, e Wedson Milhomem, 28, eram o principal esteio da mãe. Eles cuidavam dela, que estava sem trabalhar por causa dos problemas de saúde, e garantiam o sustento da casa com o dinheiro que conseguiam com trabalhos em fazendas da região.

Hoje, está sendo assistida por um sobrinho, que deixou a família na cidade de Araguaína (TO) para lhe prestar apoio. Mas ele logo terá que voltar para sua casa e trabalho: "Vou ficar sozinha, abandonada", diz.

Um mês depois do massacre, ela pede celeridade nas investigações e clama por Justiça: "É muito difícil passar por uma situação dessas e ainda ver os policiais soltos. Meus filhos não eram bandidos, eram só pessoas que queriam um pedaço de terra para trabalhar".

Um deles, conta, nem tinha ligação com a disputa pela Fazenda Santa Lúcia –Wedson tinha ido ao local apenas para visitar o irmão e acabou sendo baleado.

Diz que tão grande quanto a dor da perda foi a impossibilidade de lhes dar um velório e um enterro dignos. "Mataram e entregaram os corpos como se fossem bicho. Fui humilhante".


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